Excelente vassalagem e adulta banalidade

Espanta-me o sentido divisivo que se extrai do discurso de JMT, colocando em oposição gerações novas e velhas; Lisboa e o interior; “eles” e “nós”, isto é, instituições e cidadãos.

Ainda no rescaldo das celebrações do dia de Portugal, oiço os fora na rádio e, sem surpresa, constato que o discurso do presidente cerimonial, João Miguel Tavares, recebe epidíticas e afáveis reacções, pois é sabido que a política dos afectos colhe mais frutos entre nós do que a da fria e lúcida racionalidade. JMT discursou como um vate, vaticinando perante a mais alta instância portuguesa, tal como Camões o fez perante D. Sebastião, naquele poema que, segundo o honrado “primeiro filho da democracia a presidir às comemorações do 10 de Junho”, deveria ser preterido pela lírica camoniana.

É difícil não pensar no poema que não precisa de ser nomeado quando se pensa em Portugal. Abeirando-se do final, canta em voz própria um desencantado Camões: “Por isso vós, ó Rei, que por divino/ Conselho estais no régio sólio posto,/ Olhai que sois (e vede as outras gentes)/ Senhor só de vassalos excelentes” (X, 146). Note-se que o poeta muito educadamente chama o rei à atenção, à importância do seu cargo, aqui representado pelo trono, que afinal não é dele, mas de quem nele se senta. Além disto, Camões faz-se incluir na excelente vassalagem, por oposição “às outras gentes”, pois é para ele, a pedido dele (“olhai”), que o rei olha e portanto reconhece aqueles cujo conselho deve ouvir.     

As enciclopédias que eu tenho em casa são porventura diferentes das de JMT. A verdade é que Os Lusíadas não é um acrítico, e muito menos inocente, panegírico sobre Portugal e os portugueses, muito pelo contrário, como se vê na citação; há décadas que a crítica especializada, nacional e internacional, o sabe e discute (vide crítica camonista de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Maria Vitalina Leal de Matos e Helder Macedo). A título de exemplo, o grau de arrojo poético mas sobretudo político de uma figura como a de o Velho do Restelo, em particular no âmbito de um poema épico como este, hoje ainda não passa de um néscio insulto. Por esta realidade textual ser ainda desconhecida, quiçá isto faça parte daquilo que, parece-me, são afinal os descobrimentos dos quais temos receio, e aos quais JMT alude no seu discurso. Ensine-se, pois, mais Ilha dos Amores e menos nações valentes e mortais, ou seja, que se conheça o poema pelo seu merecido alto assento na literatura-mundo, em detrimento de uma (já vimos que precária) exaltação nacional.

Sucede que a tal política que vai directa ao coração e não à cabeça, é a que favorece o regresso e/ou a manutenção das políticas que nos dividem, revolucionárias ou reaccionárias, e que alastram a olhos vistos pelo globo. Portugal faz parte das excepções europeias dos novos populismos, mas somente porque o seu vassalo da tirania ainda não foi identificado. Espanta-me, então, o sentido divisivo que se extrai do discurso de JMT, colocando em oposição gerações novas e velhas; Lisboa e o interior; “eles” e “nós”, isto é, instituições e cidadãos. Esta dimensão paternalizante, que infantiliza o cidadão em vez de o emancipar, tornando-o consequentemente inseguro perante a sua representação política, contribui somente para o atavismo manifestado na crescente percentagem de abstencionistas. Note-se que para JMT “o desinteresse pela política” é um “sentimento”, o que, se assim o é, me deixa a interrogar sobre a natureza do interesse pela mesma. Dado que o poder das instituições democráticas emana de baixo para cima, a última coisa que uma sociedade saudável deve esperar é um deus ex machina, com ou sem nevoeiro, que venha pôr ordem nisto tudo.

Tal como os vassalos, os deuses são corruptos, pois caso não o fossem, aqueles não se poderiam rever nestes. Nisto, na transversalidade da corrupção, seja ela macro ou micro, a “distância cultural” de Lisboa a Portalegre mede-se pela morada do meu filho que ilegalmente mudei para que ele estudasse noutra escola; pelo melão que comprei sem factura à beira da estrada; pela recusa do 13.º mês da minha mulher a dias angolana; no romeno que me apanha as pêras a troco de tostões não declarados; nos impostos aos quais tento fugir, ao passo de que disso faço tola mas bem recebida conversa de café.

Talvez devamos rever o significado da letra “c” no chamado “factor c”, que, mais do que cunha ou corrupção, parece gritar cultura. Se enquanto colectivo somos mesmo “capazes de coisas extraordinárias”, comecemos então por incapacitar alguns aspectos da nossa cultura, que a nós somente, e não às instituições, diz respeito, e assim restabeleçamos “a aliança entre o indivíduo e o cidadão”.

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