Sem-abrigo: sem investimento, não vamos lá
Para eliminar ou reduzir drasticamente este flagelo social até 2023, é preciso um investimento maciço do Governo em respostas com provas dadas.
O “milagre” finlandês, recentemente noticiado pelo The Guardian, refere-se ao sucesso do programa Housing First naquele país. O conceito (em português, Casas Primeiro) é transparente na sua metodologia. Partindo do princípio de que os modelos de acolhimento temporário, transitório e de emergência não funcionam a longo prazo para retirar pessoas da situação de sem abrigo, tentaram outra coisa: dar casas às pessoas.
Na Finlândia, um país com metade da população de Portugal, realizou-se um investimento central de cerca de 250 milhões de euros, ancorado numa estratégia nacional, mas com desdobramentos locais, sobretudo nas grandes cidades. Segundo o artigo, com uma versão em português pela Visão, isto permitiu que a Finlândia seja o único país europeu em que o número de pessoas nesta situação esteja a reduzir-se, e muito. Hoje, temos tudo para conseguir esta resposta em Portugal. Temos estratégia nacional, temos agentes locais, temos até um Presidente da República a fazer apelos nacionais sobre o assunto. Só falta o investimento do Governo de António Costa, para passar das palavras aos atos.
Não sejamos ingénuos. As pessoas em situação de sem abrigo caem na rua por vários motivos, muitos dos quais se cruzam com as próprias consequências dessa condição. É muito frequente existirem casos de doença mental, de dependências de drogas, entre outros problemas que são enormes obstáculos à recuperação pessoal e social. No entanto, há algo que é transversal a todos e todas, a falta do mais básico dos direitos humanos: uma habitação.
Na Câmara Municipal de Lisboa, foram lançados há alguns anos os primeiros programas Casas Primeiro, para pessoas com doença mental ou com adições. São pessoas que, por norma, tiveram períodos de permanência na rua de vários anos, por vezes décadas, e que perderam toda a ligação com a estrutural social.
Tal como no modelo finlandês, este programa permite conceder habitações sem impor condições prévias, como o primeiro passo para uma reintegração social. A habitação como base, para depois poder recompor a vida. Como podemos nós pedir a alguém que dorme na rua, que não tem onde fazer a sua higiene e se alimentar dignamente, para encontrar um emprego? Como podemos tratá-los como crianças que têm de subir “patamares” para ter “recompensas”? Precisamos de olhar para este problema com um olhar humano e solidário. E se fosse consigo? Não é uma questão de escolha ou de mérito, as pessoas precisam de um teto que seja delas para recomeçar.
Em Lisboa, existem 80 fogos neste programa distribuídos pela cidade, cujos inquilinos são acompanhados por duas organizações sem fins lucrativos no seu quotidiano. São precisas pessoas com formação especializada, que acompanhem cada passo que estas pessoas dão para que o projeto tenha sucesso.
Com certeza não é fácil, nem barato, mas a Câmara Municipal de Lisboa fez a escolha certa e há notícias de que vai alargar esta resposta. Ainda bem que assim é, porque precisamos de ir para além das patologias, permitindo a abertura do programa a todos e a todas naquilo que é a substituição de uma função do Estado central, na garantia de direitos humanos.
Lisboa concentra hoje cerca de metade das pessoas em situação de sem abrigo do país. A maior parte não configura uma situação de rua, pois já tem acolhimento em algum dos vários centros financiados pelo município ou pela Santa Casa. Mas a câmara sozinha não me parece que consiga responder ao repto lançado pelo Presidente da República em 2017. Estas pessoas têm visto a sua situação ser gerida dentro das possibilidades financeiras das autarquias locais e de alguns projetos europeus, mas precisamos e elas merecem mais.
Para eliminar ou reduzir drasticamente este flagelo social até 2023, é preciso querer resolver e para isso não basta um conjunto de intenções bem delineados de cima para baixo, é preciso um investimento maciço do Governo em respostas com provas dadas. Não pode cair sobre os maiores centros urbanos a responsabilidade de financiar a 100% as respostas a problemas que são nacionais. Hoje, Lisboa recebe pessoas de norte a sul do país porque tem uma resposta sólida, garantia de alimento e de alojamento para a esmagadora maioria destas pessoas. Fá-lo há anos com toda a solidariedade e toda a humanidade. Mas precisamos de ser mais exigentes enquanto sociedade e para isso é preciso investimento que tem tardado a sair do orçamento do ministro Mário Centeno.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico