A prova dos factos, antes do que terá de ser
Digamos com clareza: não obstante as limitações, o novo regime de autonomia de gestão dos museus do Ministério da Cultura é positivo.
É positiva a contratualização e planeamento plurianuais, com expressa previsão de meios financeiros; é positiva a “ampla latitude de poderes e faculdades para tomar decisões” das direcções, incluindo a capacidade de celebração de protocolos com terceiros; é positivo o preenchimento de lugares por períodos limitados (que em todo o caso poderiam ser algo maiores, porventura 12 anos em vez dos 9 agora definidos) e através de concursos universais, com júris independentes (que afinal se mantiveram na versão publicada em DR); é positiva a instituição de um conselho de directores (mal chamado de Conselho Geral de Museus), com capacidade de iniciativa própria e na imediata dependência do ministro da Cultura; é positivo o mecanismos de consignação e distribuição solidária de receita; e é finalmente positivo ter-se aproveitado a ocasião para integrar nesta rede o Museu de Beja, o Museu da Resistência e da Liberdade e também o futuro Museu do Tesouro Real, assimilado, como deve ser, ao Palácio da Ajuda.
Existem aspectos negativos a reter? Sim, existem. Uns são como que congénitos. É o caso do estatuto jurídico de “serviços não personalizados” encontrado para estas “unidades orgânicas”. Continuarão a não possuir capacidade plena de contratualização e, se outras medidas não forem tomadas, ver-se-á rapidamente como se instalará a ineficácia operacional do sistema.
Outros são circunstanciais. É o caso da supressão dos conselhos consultivos em cada museu (previstos em versões anteriores do DL, embora porventura mal chamados de conselhos gerais). Entendidos como instrumentos de envolvimento cidadão e unanimemente aplaudidos (mesmo pelos mais críticos desta reforma) deverão ser tema a revisitar e constituirão certamente prioridade para qualquer futura “geringonça”. Outro é a formação em paralelo de um grupo de trabalho absurdo, sobreposto à missão do supra mencionado Conselho Geral em avaliar o impacte da aplicação deste regime e propor as alterações que se mostrem necessárias. Chamado pomposamente “museus do futuro” tal grupo revela tudo o que de pior existe na política e na administração pública: uma conjugação entre “burocracia” (aqui na versão da “interdepartamentalidade” bacoca e espúria), “afinidades” (partidárias, académicas e de corredor) e “deslumbramento” (típico dos jovens que enxameiam os gabinetes ministeriais), tudo com o resultado ofensivo de em catorze membros, apenas dois estarem no terreno, ambos directores — como se entre os profissionais dos museus em referência, ou dos seus representantes associativos, não houvesse quem com muito maior propriedade esteja habilitado a reflectir sobre o futuro, caso tal fizesse sentido neste contexto.
Finalmente existe o verdadeiro busílis de tudo isto (para além da autêntica bomba-relógio que é o despovoamento em pessoal dos museus, aqui omisso, como elefante na sala que ninguém quer ver). Trata-se do mecanismo de consignação da receita e da sua redistribuição solidária, de tal modo que as (poucas) unidades superavitárias contribuam para as (muitas) deficitárias. Falamos aqui de verbas consideráveis, certamente muito superiores a vinte milhões de euros anuais (em 2017, na DGPC, só as receitas de bilheteira ultrapassaram os dezoito milhões). Abrirão facilmente mão destes montantes a DGPC e as DRCs, que actualmente os centralizam e gerem como entendem? Ou dirão que sim, para fazer que não, através dos muitos expedientes procedimentais a que facilmente poderão recorrer? Será o OE dessas entidades reforçado, como é necessário, de modo a colmatarem o rombo que assim irão sofrer? Será esta receita usada exclusivamente em actividades (como manda o DL), ou seja, em programação e despesas corrente, e não em obras de fundo nos edifícios ou pagamento de salários? Será a fixação de tectos de despesa e consequente redistribuição de receita feita segundo critérios transparentes e escrutináveis (questão que o próprio Presidente da República sugere, na sua promulgação)?
Enfim, um mar de questões que impõem acompanhamento atento de todo o processo, para que o mesmo não estiole na praia. Vencida a prova dos factos e alcançando chão seguro, será então o momento de pensar em cumprir o que de mais importante ficou por fazer e consta tanto do programa do Governo como do preâmbulo deste DL: reconfigurar os organismos superiores da administração pública nesta área, recriando um Instituto dos Museus (agora também dos Monumentos), muito mais leve e operacional, onde parte das “unidade orgânicas” agora definidas (desde logo, os monumentos e talvez também alguns museus e palácios) continuem a preferir o estatuto que este DL lhes oferece e outras evoluam para serviços personalizados, com a autonomia que os museus nacionais sempre tiveram no passado e de que mais recentemente o MNAA se fez veementemente porta-estandarte.