Eça, o diplomata. Ou como o escritor também foi O Nosso Cônsul em Havana

Na RTP a partir desta sexta-feira, 13 episódios para redefinir Eça de Queirós no imaginário colectivo como um diplomata anti-escravatura que também viria a ser o autor de Os Maias. Elmano Sancho interpreta, Francisco Manso realiza.

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Elmano Sancho interpreta um jovem Eça de Queirós rtp

A nova série da RTP conta com um factor que já poucas vezes é associado a Eça de Queirós: “Temos o efeito surpresa”, diz o actor Elmano Sancho, a quem coube a tarefa de interpretar um dos maiores nomes das letras portuguesas numa fase menos conhecida da sua vida. O pai do romance realista português também foi O Nosso Cônsul em Havana e é mais uma história de Eça para contar, desta feita nas noites de sexta-feira da estação pública.

Realizada por Francisco Manso (Assalto ao Santa Maria, A Ilha dos Escravos, O Testamento do senhor Napomuceno) e escrita por António Torrado com colaboração de José Fanha, a série é uma ficção histórica com base em factos reais contada em 13 episódios de 45 minutos. O realizador não hesita em responder ao PÚBLICO que esta é “uma das grandes produções da RTP”, com cerca de dez dias de filmagens em Cuba, entre o centro histórico de Havana e as antigas plantações de cana-de-açúcar, num total de cerca de três meses em que a equipa de cerca de 40 técnicos e 60 actores se foi dividindo ainda entre a Madeira e localidades como Penafiel, Porto, Aveiro, Castelo de Vide ou Portalegre.

“É uma mais-valia ter apostado nesta faceta do Eça que é menos conhecida, porque temos o efeito surpresa”, completa então o novo Eça de Queirós, Elmano Sancho, autor de uma versão do escritor enquanto jovem, diplomata humanista, retratado como um voluntarioso activista contra a escravatura. “Esta vertente do Eça vai primeiro surpreender o espectador e depois aproximá-lo – às vezes estas figuras são tão distantes e divinizadas por nós que esquecemos que também foram homens”, acredita o actor.

“Este é um momento muito particular da vida de Eça de Queirós quando chega a Cuba como cônsul de Portugal. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Andrade Corvo, tinha um problema grave para resolver”, contextualiza Francisco Manso, referindo-se ao facto de os cidadãos chineses em Cuba serem “tratados como escravos”, “com conivência das autoridades”.

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Elmano Sancho como Eça de Queirós RTP

Dignificar a vida dos escravos

Eça de Queirós (1845-1900) teve toda uma carreira diplomática que o levou não só a Cuba mas também ao Egipto, EUA ou Reino Unido. Aos 27 anos, entre o final de 1872 e o início de 1873, estreava-se na carreira diplomática como cônsul português em Havana. Para trás ficava o seu trabalho como jornalista e de administrador do concelho de Leiria – e também a escrita de O Crime do Padre Amaro, em Leiria, que só seria publicado já quando era cônsul em Inglaterra. O seu mandato em Havana que acabaria por ficar marcado pela oposição de Eça ao uso de escravos chineses, saídos da China pelo território português de Macau, na cultura da cana do açúcar pelos fazendeiros e colonos espanhóis. Foi porém um curto consulado, interrompido por cinco meses e meio de viagem pela América do Norte; em 1874 já estava de volta a Lisboa para depois partir para Newcastle e Bristol.

“Ele é responsável por uma das mais extraordinárias páginas da diplomacia portuguesa nessa perspectiva, da defesa dos direitos humanos”, sublinha Francisco Manso, que há um par de anos já andara por Cuba em busca de locais de filmagens para o futuro projecto. “O trabalho dele foi tentar dignificar a vida desses escravos, que eram guardados em depósitos. Ele ficou só 14 meses, a situação dos chineses só se resolveu mais tarde mas ele lançou as bases para que se tentasse que os chineses e também os africanos tivessem iguais direitos em Cuba”, resume Elmano Sancho, que divide o ecrã com nomes como Joaquim Nicolau, Zirni Cao, Luísa Cruz, José Eduardo ou Leonor Seixas.

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Sendo um lado menos conhecido do autor de Singularidades de uma Rapariga Loira — conto que escreveu em Havana —, o escritor é das figuras oitocentistas mais reconhecíveis pelos portugueses. Elmano Sancho admite ter sentido a carga de ser Eça, o venerando autor de Os Maias, mas afastou-a rapidamente. “Era contraproducente tentar recriar um certo Eça — todos nós temos um imaginário que acabamos por criar através da leitura das suas obras”, explica ao PÚBLICO. A sua base foi então a leitura das cartas que Eça enviou de Havana a ministros ou escritores, a partir das quais tentou “descobri-lo e adivinhá-lo”, e depois o trabalho físico em torno de um Eça de 27 anos e não do escritor de 40, 50 anos que mais está presente na mente dos portugueses.

“Tentei emagrecer”, sorri o actor. “O Eça era de facto muito magro, tinha problemas de estômago. Mas de resto tenho o rosto um bocado angulado, o nariz um pouco proeminente — mas não em demasia, mas pronto.” Alinhada a silhueta do escritor, entram as personagens com quem contracena: a menina clandestina chinesa Lô, o órfão Juan, o burocrata Esteves, o maçon Torradellas, os Morales, os Bidwell, o escravocrata Don Zulueta. É no confronto com elas e com a paisagem ou os interiores de época que o director de fotografia José António Loureiro ajuda a delinear a história do escritor diplomata no ano em que se comemora o centenário das relações diplomáticas entre Portugal e Cuba.

A carreira diplomática não deixou grandes impressões, no sentido material, a Eça de Queirós. “Ainda veremos os jornais estrangeiros noticiarem: ‘Ontem, na Rua de... caiu inanimado de fome um indivíduo bem trajado. Conduzido para uma botica próxima o infeliz revelou toda a verdade — era o embaixador português. Deram-lhe logo bifes. O desgraçado sorria, com as lágrimas nos olhos.’”, escreveu em Uma Campanha Alegre (1890-91).

Francisco Manso, também realizador da mini-série Almeida Garrett (2000), frisa que este é um projecto “de vulto, que tem preocupações de seriedade no aspecto técnico” e que teve o apoio do secretário de Estado das Comunidades Portuguesas. “Há a ideia de que um resumo mais concentrado destes 13 episódios possa ser mostrado um pouco por todo o mundo. Nos leitorados, através das embaixadas, nos espaços do Instituto Camões — essa versão, como um filme, vai ser mostrada em Cuba em Julho.” O Nosso Cônsul em Havana contou com o apoio do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), do Instituto Camões, das várias autarquias e outras entidades públicas e privadas.

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