Mário Cláudio: “Agustina é uma criadora insuperável de ambientes e atmosferas”
O Prémio Pessoa de 2004 viveu uma longa relação de amizade com Agustina Bessa-Luís desde que teve oportunidade de a conhecer pessoalmente nos anos 70. É um confessado admirador da obra da escritora, e acredita, como sublinha neste depoimento recolhido pelo PÚBLICO, que dela vai ficar o seu “estilo único e inigualável”, e também a sua visão da portugalidade, “uma portugalidade a Norte, com grandes personagens”.
“Conheci a obra da Agustina quando estava a cumprir o serviço militar na Guiné, no final dos anos 60. Era uma figura de quem eu já tinha ouvido falar muito. Mas foi lá que praticamente li os livros todos publicados até essa altura. E também li, nessa altura, com grande entusiasmo as crónicas que ela publicava no Diário Popular. Fiquei completamente fascinado.
Depois, quando regressei ao que na altura se chamava a Metrópole, quis conhecê-la pessoalmente. Consegui-o através de uma amiga comum, Maria Marcelina (a mulher do pintor Jaime Isidoro). Nessa altura, a Agustina morava ainda na Avenida do Marechal Gomes da Costa, e tinha acabado de regressar há pouco da famosa viagem à Grécia, com a Sophia, o Eugénio... Lembro-me muito bem de que ela trazia um medalhão ao pescoço, que tinha comprado lá, e de que gostava muito.
A partir daí, ela abriu-me as portas de casa, e eu passei a frequentar os pequenos serões dos seus amigos. Eu era mais ouvinte do que participante, com uma timidez ainda por cima agravada pelo stress pós-serviço militar. Mas iniciou-se aí uma amizade. Pouco depois de eu publicar o livro Amadeo [1984], a Agustina insistiu muito para eu apresentar um livro dela, e eu recusei, porque não me sentia à altura. Ela compreendeu e não ficou nada ressentida. Mais tarde, ela própria viria a prefaciar um livro meu, Triunfo do Amor Português [2004].
Uma vez entrevistei-a para o Jornal de Notícias. Acho que essa entrevista foi, de facto, o início do diálogo que depois mantive com ela. Trocávamos livros, tínhamos uma amizade muito respeitadora da autonomia de cada qual, sem grandes intromissões. Gostávamos muito de conversar, e solidificámos essa amizade em várias deslocações que fizemos, por exemplo a Bordéus e a Frankfurt. Estávamos lá quando o Saramago ganhou o Nobel, e a Agustina teve uma atitude absolutamente extraordinária e nada vulgar no mundo das letras: convidou um grupo de escritores, poucos, para um jantar comemorativo da atribuição do Nobel, e mandou vir champanhe. Sabendo nós como ela não era apreciadora de Saramago, só uma grande senhora faria isso. Ela tinha esses gestos. Podia ser um pouco irónica, e até às vezes sarcástica, com as pessoas de quem não gostava, e às vezes também com aquelas de quem gostava, mas não era de maneira nenhuma grosseira a lidar com os outros. E tinha em relação à sua própria carreira uma atitude de grande fair-play: nunca se tomava demasiado a sério, tinha um grande sentido de humor, e isso foi uma coisa magnífica.
O que é que vai ficar da obra da Agustina? Quanto a mim, vai ficar o que tem a ver com a portugalidade, uma portugalidade a Norte, com grandes personagens que a ilustram. A enorme capacidade de dar atmosferas, ambientes, aquilo a que se chama o espírito do tempo e o espírito do lugar. Nisso, Agustina é insuperável. E vai ficar a sua enorme cultura humanística, uma coisa que tende a desaparecer da literatura. E também um estilo único, que nunca ninguém teve igual. Acontece com ela o que aconteceu com o Aquilino: são autores de estilo. E essa ideia de um autor identificável pelo estilo também está a desaparecer – agora tudo se arrisca a ser um pouco igual.
Talvez aquilo que fique menos é um certo pendor filosofante, que às vezes é até um bocadinho gratuito, arbitrário, na formulação. O resto fica, de certeza absoluta. Lembro-me de o David Mourão-Ferreira dizer uma vez sobre ela, em jeito de censura, mas não de uma forma penalizante: Agustina era talvez o grande escritor português de “morceaux choisis”, o maior de todos. Tem textos inesquecíveis, extraordinários, que podem ser antologiados. É sempre possível ir a um livro dela e recolher um texto de três ou quatro páginas que é um retrato fabuloso de um personagem, ou a representação de um espaço, ou a evocação de um tempo. Nisso, ela é extraordinária.
Depoimento recolhido por Sérgio C. Andrade