A nova Guerra dos Tronos
Chamar “’geringonça’ europeia” a este processo é um revisionismo de toda a história política de Portugal desde as legislativas de 2015.
Acabada A Guerra dos Tronos e resolvida a contenda sobre o trono de ferro, não há tempo para grandes ressacas. Quem gosta de enredos com jogos de poder, sacrifícios surpreendentes de personagens, alianças efémeras e inesperadas, não precisa de passar por qualquer tipo de carência. Basta transpor a fronteira entre a ficção e a realidade, deixar Westeros para trás e abraçar o quotidiano de Bruxelas. O centro da Europa está fértil em jogos políticos nos dias que correm.
Não quero que digam que fico em falta por não analisar o resultado das eleições europeias em Portugal. Mas, depois de espremidos os números, escalpelizadas as estatísticas e suas tendências, extrapolados os cenários e lançados ao mundo balanços para todos os gostos, haverá pouca cabeça que ainda não tenha escolhido a sua sentença. Em todo o caso, sucintamente, não farei caixinha da minha opinião.
A derrota de PSD e CDS é inequívoca e radica na viragem à direita destes partidos — muitíssimo mais visível em Nuno Melo do que em Rui Rio — que vem desde a governação passada. “Isto quase parece o Titanic”, foi a frase premonitória de Melo mas nem assim evitou o icebergue. À direita o tempo é de lamber as feridas, porque as facas afiadas estão guardadas para o outono. O PAN exibiu as suas garras e o PCP terá de demonstrar que o resultado alcançado não marca uma tendência, algo que só se poderá concluir no cair da folha. O Bloco de Esquerda cimentou o seu terceiro lugar no panorama partidário nacional e mostra que já não se mede por conjunturas, tendo a Marisa Matias sido uma candidata excecional. Já o PS teve a vitória que podia, mas não a vitória que queria. No final, ganhou a abstenção, o que deve merecer reflexão profunda. E é aqui que regressamos às questões europeias.
António Costa fez uma viragem estrutural nas últimas semanas que devemos registar. Ainda corria a campanha eleitoral e já o víamos a partilhar holofotes com Emmanuel Macron, o Presidente francês. O objetivo, diziam, seria criar uma aliança progressista para estancar o avanço da extrema-direita. A tática era duvidosa, dado ser demonstrável que não se combate a extrema-direita dando a mão aos liberais que lhe estenderam o tapete com os seus tratados europeus ou as suas políticas de austeridade e de cortes no Estado social. E isso ficou novamente patente, pois a política de Macron perdeu para o extremismo de Le Pen. Que conclusão tirar? O que agora é cada vez mais inequívoco: tratava-se de uma desculpa para uma viragem à direita do PS. Chamar “‘geringonça’ europeia” a este processo é um revisionismo de toda a história política de Portugal desde as legislativas de 2015.
Ainda ontem, Francisco Assis escreveu aqui no PÚBLICO que o caminho defendido por António Costa para a Europa não é “só distinto como até contraditório” com o que está a ser feito em Portugal. E continua: “O que António Costa tem feito no plano europeu, a meu ver bem, contradiz absolutamente a solução política prevalecente em Portugal.” Traduzindo, Assis diz que há um Costa em Portugal e outro para a Europa. Mas a explicação é insuficiente. O que temos é um António Costa que fez acordos à esquerda que trouxeram algumas políticas progressistas a Portugal, mas esse já faz parte do passado. O António Costa de 2019 é o que defende as parcerias-público-privadas na saúde, que ataca e tenta dividir trabalhadores, que repete argumentos de Passos Coelho e, como se vê agora, tenta uma aliança europeia para reforçar tratados liberais e antidemocráticos. Ainda se lembra de quando António Costa disse “Não sou defensor do Tratado Orçamental”? Vire essa página, que isso é passado.
O apoio de Assis à nova estratégia de Costa só pode assustar quem defendeu a “geringonça”. É que o nosso povo sabe a esperança criada quando se contrariou o “presente projecto europeu” de austeridade que nos ameaçava com sanções quando aumentamos salários, pensões e recuperamos direitos. Sabemos como isso fez a diferença e como pode fazer ainda mais. Tem de haver é a coragem e a vontade para aprofundar esse caminho, algo que António Costa parece rejeitar.
Ainda sobre a crónica de Assis, termino com uma concordância. A coragem que Manuel Morais teve da denúncia do racismo exige-nos a solidariedade pública para impedir o seu silenciamento.