Em nome do mundo rural, Parlamento volta a recusar fim da caça com matilhas
Bloco e PAN insistem em acabar com o uso de matilhas, mas pela terceira vez a proposta vai chumbar. Todos os outros partidos respondem que a caça é estruturante para o mundo rural.
À terceira não vai ser de vez. Bloco e PAN vão ficar de novo sozinhos a defender o fim das matilhas tanto esta quarta-feira, na discussão no plenário, como na sexta-feira, na votação. PSD, PS, CDS, PCP e PEV vão todos votar contra, tal como fizeram em 2017 e 2018, quando os dois partidos fizeram iguais propostas, primeiro em conjunto, depois em separado. A argumentação principal é transversal: limitar a caça é um ataque ao mundo rural e ao interior.
Nos seus projectos de lei, Bloco e PAN estipulam que passa a ser proibido caçar com recurso a matilhas. Mas permitem que as actuais possam manter a sua actividade sem, no entanto, poder haver licenciamento de novas nem adicionar cães às já existentes, incluindo as crias de fêmeas reprodutoras da matilha. A bloquista Maria Manuel Rola explicou ao PÚBLICO que a ideia é ter um período transitório para que as matilhas possam ir envelhecendo e os caçadores não recorram ao abandono (ou abate) de animais.
De acordo com o ICNF – Instituto de Conservação da Natureza, há actualmente 512 matilhas registadas em Portugal – quase metade no Alentejo, um quarto no Norte. É obrigatório o registo de cães que integram matilhas de caça maior, também chamada de “caça a corricão”, em que podem ser usados até 50 cães em simultâneo. A sua função é “levantar a caça”, fazendo-a sair do esconderijo. Mas o PAN e o BE dizem que muitas vezes há luta entre os cães e as raposas, javalis ou veados, o que os leva a argumentar que os caçadores estão a promover a luta entre animais, proibida por lei desde 2009.
A praga dos javalis
Com chumbos recentes, porquê insistir agora? “Porque há uma mobilização social contra este tipo de caça. Apesar de não haver uma maioria cá dentro [da AR] que represente uma maioria social lá fora, não faz sentido continuar com práticas que já não são cientificamente aconselhadas.”
O socialista Pedro do Carmo, eleito pelo distrito de Beja, defende que as matilhas são “essenciais para combater a praga dos javalis” e já há regras exigentes para o bem-estar dos animais.
Do mesmo distrito, o comunista João Dias argumenta que a caça é “parte integrante e estruturante do mundo rural e por isso uma medida de combate ao despovoamento” pela economia que gera. Além dos aspectos sanitários, uma vez que ajuda a fazer o controlo, por exemplo, da população de javalis, acrescenta o deputado que integra a comissão parlamentar de Agricultura, e que recusa a ideia de perigo de “abate desmesurado” de algumas espécies, como apontam também PAN e Bloco. “A actividade da caça é regulada e o ICNF tem cumprido a sua função de fiscalização.”
Já o ecologista José Luís Ferreira afirma que o PEV vai votar a favor das propostas do BE e do PAN, apesar de nas anteriores ocasiões se ter abstido.
O deputado do PSD Nuno Serra acusa os dois partidos de usarem “argumentos deturpados com o fim único de acabar com a caça por preconceito ideológico” e diz que as matilhas não têm a função que PAN e BE dizem, mas sim apenas as de “levantar, espantar e trazer a caça; não são eles que caçam”. Desafia-os a “assumirem que é isso que querem e expliquem-no aos quase 250 mil caçadores registados no país”.
A centrista Patrícia Fonseca afirma que as propostas “denotam um desconhecimento imensa da realidade do mundo rural e do real impacto da caça”. As matilhas são usada no controlo da caça grossa, essencialmente o javali e o veado, que são espécies actualmente em desequilíbrio populacional. “O seu único predador é o homem e o excesso de animais comporta riscos. Os javalis destroem culturas e são um problema de saúde pública porque podem transmitir doenças, como a peste suína, aos porcos montanheiros (que pastam livremente no montado alentejano), que se pode estender às explorações”, descreve a deputada do CDS-PP. Que aponta a “incoerência do Bloco que ainda há pouco tempo pedia ao Governo um plano de controlo do javalis": “Agora querem acabar com a caça com matilha... é mesmo uma medida para caçar votos com a economia rural através de uma máscara de partido ecologista responsável.”
“Uma tragédia de dimensões graves”
Jacinto Amaro, presidente da Federação Portuguesa de Caça (Fencaça), diz que a aprovação das alterações à Lei da Caça desejadas pelo BE e PAN representaria “uma tragédia de dimensões graves para a economia nacional” e “um risco para a saúde pública numa altura em que a peste suína africana alastra pela Europa e ameaça Portugal”.
“A União Europeia exige uma série de medidas para evitar que a peste suína africana, que já chegou à Bélgica, alastre e para que se combata o aumento da população de javalis e querem acabar com a maneira mais eficaz e controlada de os abater que é a caça com matilhas? Nada disto faz sentido”, diz.
O presidente da maior federação de caçadores portugueses, com cerca de 100 mil associados, lembra que a peste suína africana “ameaça o sector da carne porco em Portugal”, nomeadamente “a produtiva fileira do porco preto, que, por os animais pastarem de forma selvagem, são os que correm maior risco de contraírem a doença através dos javalis”. “Estamos a falar uma ameaça séria à saúde pública.”
Jacinto Amaro revela também que, para reduzir a população de javalis em Portugal, “vai ser publicado em breve um edital, que alarga o período das esperas nocturnas ao javali de oito dias para 30 por mês”, salientando “não fazer sentido quererem acabar com a forma mais eficaz de reduzir esta praga”.
O dirigente lembra ainda que os javalis “já causaram dezenas de acidentes rodoviários”, que “dizimam a caça mais pequena, ameaçando a biodiversidade” e “destroem várias culturas agrícolas.” “Agora até já estão a entrar em aldeias e vilas à procura de comida e em Setúbal e no Algarve até já desceram às praias”, recorda.
Por outro lado, Jacinto Amaro lembra “a importância da caça em geral e a do javali em particular para a economias locais, especialmente para as do interior do país”. “Uma grande montaria ao javali chega a ter 20 matilhas, com dois homens por matilha. Só aqui são 20 pessoas, juntamente com muitas outras necessárias para montar a caçada e chegam a 50 pessoas, tirando os caçadores. É um importante mercado de trabalho espalhado por todo o país e que dá emprego também noutros sectores, especialmente no interior”, assegura Jacinto Simões.
“Às gentes do interior já lhes tiraram os CTT, os bancos, as farmácias e os centros de saúde, se lhes tirarem a caça, tiram-lhes o pouco que lhes resta, que lhes dá emprego e é motivo de celebração em festas e romarias”, conclui.
Notícia corrigida às 15h30 sobre o sentido de voto do PEV, que não é contra mas a favor; e às 19h20 com a posição do CDS.