Livro queimado pelos nazis e escondido numa parede durante 80 anos chega a Portugal

O livro foi publicado em 1928 e não era conhecida a sua autoria. Sabe-se agora que foi escrito por Hans Herbert Grimm. Retrata a Primeira Grande Guerra e descreve os combatentes alemães de forma pouco heróica.

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O livro satiriza o absurdo e o horror da guerra Reuters/HANDOUT

Um romance semi-autobiográfico publicado anonimamente na Alemanha, em 1928, que satiriza o absurdo da guerra, que foi mandado queimar pelos nazis e escondido pelo autor, numa parede, foi redescoberto ao fim de 80 anos e chega agora a Portugal.

Em 1928 foi publicado na Alemanha um livro sem autoria atribuída, intitulado Schlump, que relata as experiências do seu protagonista, Emil Schulz, a quem, certo dia, um polícia atribuiu inadvertidamente uma alcunha algo ridícula, da qual ele nunca mais se viu livre: “Schlump, uma vida inteira como Schlump”, como se lê no prefácio da edição portuguesa, publicada pela PIM! edições, assinado pelo escritor e crítico literário alemão Volker Weidermann.

Escrito por um professor chamado Hans Herbert Grimm (1896-1950), o romance inspira-se na sua participação na Primeira Grande Guerra, entre 1914 e 1918, descrevendo os combatentes alemães de modo pouco heróico, a estratégia adoptada no confronto como “imprudente, disparatada e imbecil” e o imperador “como um cobarde e toda a guerra como uma brutal piada de mau gosto”.

Em “Schlump (Histórias e aventuras da vida do desconhecido soldado Emil Schulz, chamado Schlump, narradas pelo próprio)”, o humor é a principal arma de arremesso contra o absurdo e a brutalidade da guerra, cujo realismo interrompe, a espaços, o tom leve da obra.

Volker Weidermann descreve o livro como um “conto documental” que “desafia o leitor a tentar distinguir aquilo que é conto daquilo que é documentário” e em que “a regra é que o mais inverosímil é sempre a parte documental, a parte que descreve a chamada realidade”.

O protagonista é um optimista, cujo heroísmo é o da resistência à hostilidade, à misantropia e ao desencanto, que vive o pior que um ser humano pode viver, mas que continua a caminhar com fé na humanidade, avançando de rapariga em rapariga, de aventura em aventura, até chegar onde a guerra é bem real e o seu superior o recebe, “com a indiferença de quem regista a chegada de um saco de ervilhas”.

A seguir, a guerra explode diante dele e, apesar de serem poucas as páginas de descrição e evocação do horror total, os momentos idílicos, vividos anteriormente, tornam essas imagens mais devastadoras, marcando-as mais profunda e intensamente na memória, revela Volker Weiderman.

Quando publicou o romance, Hans Herbert Grimm quis manter-se anónimo, mas queria que o livro tivesse sucesso, o que se revelou difícil, atendendo a que, na mesma altura, chegou ao mercado uma outra obra sobre o mesmo tema, que reclamou todas as atenções: “A Oeste nada de novo”, de Erich Maria Remarque.

Mesmo tendo sido editado por Kurt Wolff, que também publicou nomes como Franz Kafka, Arnold Zweig, René Schickele ou Georg Trakl, e tendo uma capa concebida por Emil Preetorius, amigo intimo de Thomas Mann, que lhe ilustrara vários livros e que era então um dos artistas alemães de maior renome no mercado editorial, Hans Herbert Grimm não conseguiu que o seu Schlump se tornasse um grande êxito.

Nem mesmo a crítica do autor inglês J.B. Priestley, que após a publicação do livro em Inglaterra e nos Estados Unidos, em 1929, escreveu no Times que este era “o melhor dos livros de guerra alemães até agora, à excepção de Grischa”, conseguiu lançar o livro para o êxito, uma vez que o autor continuava a querer permanecer desconhecido.

Hans Herbert Grimm manteve a sua carreira como professor e, quando os nazis alcançaram o poder e várias obras antiguerra foram lançadas para a fogueira, em 1933, Schlump foi igualmente queimado e proibido, devido ao seu tom satírico e anti-bélico.

Entretanto, com medo de ser descoberto, preso e perseguido, Hans Herbert Grimm escondeu o livro dentro da parede de sua casa e, para permanecer em segurança na cidade alemã de Altenburg e continuar a dar aulas, inscreveu-se no partido nazi, o NSDAP.

Teve de regressar à guerra, onde trabalhou como intérprete na frente ocidental, e quando o conflito terminou, regressou a casa.

A instauração de um novo sistema político, porém, impôs que Hans Herbert Grimm, enquanto antigo membro do NSDAP, não pudesse mais dar aulas, apesar de se ter afirmado, e confirmado por entidades públicas, como autor do livro antiguerra Schlump, e apesar de as suas alunas terem atestado que, durante o nazismo, o professor aconselhava e promovia a leitura de livros queimados e proibidos e nunca deixara de dar a conhecer a sua postura antifascista.

De nada serviu. Hans Herbert Grimm virou-se para o teatro, trabalhando como encenador, actividade de curta duração, porque a política cultural tornou-se mais restritiva, obrigando o antigo professor a trabalhar num areeiro.

No Verão de 1950, foi convocado pelas autoridades da recém-formada República Democrática Alemã (RDA) para se apresentar em Weimar.

Nunca partilhou com ninguém a conversa tida nesse encontro. Certo é que, a 5 de Julho desse ano, regressou à casa de família, em Altenburg e, dois dias mais tarde, quando a mulher saiu para ir às compras, pôs termo à própria vida.

Caído no esquecimento, Schlump foi redescoberto em 2013, ganhando popularidade quando Grimm foi identificado como o seu autor.

Uma edição inglesa foi produzida em 2015 por Jamie Bulloch, com prefácio de Volker Weidermann, o mesmo que se reproduz na edição portuguesa da PIM!, que chega hoje às livrarias, com uma capa que reproduz a edição original ilustrada por Emil Pretorius.

Volker Weiderman assinala que, numa carta de Hans Herbert Grimm a um amigo, datada de Março de 1929, escreveu que o seu editor tinha esperança “de que um dia surja alguém que volte a descobrir Schlump”.

E, de seguida, Weidermann acrescenta: “O facto de, 85 anos volvidos sobre a primeira publicação deste livro, e 100 anos após o início da Grande Guerra da qual ele fala, muitos leitores terem de novo a oportunidade de descobrir Schlump constitui um singular exemplo de boa ventura”.