Vincent Lambert: um caso que serve de alerta para a necessidade de haver um testamento vital
Casos como o do enfermeiro francês também acontecem em Portugal, mas não há notícia de batalhas jurídicas. Aqui, os casos serão resolvidos no recanto dos hospitais, dizem alguns especialistas em bioética.
O caso de Vincent Lambert levanta uma questão de fundo: quem pode, afinal, decidir pôr ou não fim à vida de uma pessoa em estado vegetativo persistente quando esta não deixou expressa a sua vontade por escrito? A resposta não é linear. Em Portugal, também há casos de doentes neste estado que ficam internados em hospitais públicos e em unidades privadas. Mas não há notícia de situações em que tenha havido conflitos sobre a decisão de suspender ou não o suporte artificial de vida e a necessidade de recurso a tribunais.
Uma coisa é certa: este caso que está a alimentar em França o debate sobre a morte digna deveria servir como chamada de atenção para a necessidade de ser feito um “testamento vital” (directivas antecipadas de vontade num registo que desde há anos existe para este efeito em Portugal), especificando quais são os cuidados de saúde a que querem ou não ser submetidos, defendem vários especialistas ouvidos pelo PÚBLICO.
Actualmente há “cerca de 24 mil” testamentos vitais em Portugal, onde “por via de regra não se decide retirar a alimentação e hidratação artificiais a doentes neste tipo de situação, mas não se tratará agressivamente qualquer doença superveniente, como uma pneumonia, e o doente acaba por morrer”, explica o professor de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Rui Nunes. No estado vegetativo persistente, “o tronco cerebral está íntegro, mas o córtex está suficientemente destruído para não haver vida cognitiva”, descreve.
Quem decide, então, se se prolonga ou não a vida? “Em última análise são os médicos, mas, se houver um desentendimento familiar, o caso teria em teoria que se apreciado por um tribunal”, responde.
São casos que também acontecem com relativa frequência em Portugal, “basta entrar numa enfermaria de neurologia de um hospital”, diz. Aliás, já em 2005 o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) foi chamado a pronunciar-se sobre o que fazer neste tipo de situação, a pedido de um hospital público de Lisboa.
“O que os médicos devem fazer é tentar reconstruir a vontade dos doentes junto dos familiares e amigos íntimos”, sustenta Miguel Oliveira e Silva, ex-presidente do CNECV. Quando não há directivas antecipadas de vontade nem consenso entre os familiares, “pede-se à comissão de ética do hospital que se pronuncie”, afirma. De resto, acrescenta, “se se tratar de estado vegetativo persistente sem qualquer hipótese de recuperação, concordo com a decisão [da equipa médica que acompanha Vincent Lambert] de avançar com sedação progressiva”.
“Não há uma solução perfeita. Francamente, o que espero é que este tipo de casos sejam tratados no recanto de um hospital”, confessa Ana Sofia Carvalho, professora do Instituto de Bioética da Universidade Católica do Porto, que lembra que estes são “casos muito complicados e difíceis de julgar”. No estado vegetativo persistente, mesmo depois de se retirar o suporte ventilatório, o doente pode sobreviver, a possibilidade de recuperação é muitíssimo pequena, mas estes doentes não estão em estado terminal, lembra.
Ana Sofia Carvalho considera, a propósito, que o parecer de 2005 do CNECV continua actual, passados tantos anos. Neste parecer (não vinculativo), ao mesmo tempo que se consagra a vontade do doente na decisão de manter ou não os tratamentos, os conselheiros consideram não ser eticamente condenável retirar todo o suporte de vida, inclusive o básico. Cada caso é um caso, frisam. “Qualquer análise da situação relativa a uma pessoa em estado vegetativo persistente deve ser extremamente cautelosa e partir de um diagnóstico rigoroso sobre o seu estado clínico”, enfatizam, defendendo que não é possível nestes casos “aplicar soluções uniformes”.
Notando que cabe ao doente persistente decidir desta suspensão, e que “toda a decisão sobre o início ou a suspensão de cuidados básicos da pessoa em estado vegetativo persistente deve respeitar a vontade do próprio”, os conselheiros do CNECV defendiam que, caso isso não fosse possível, deveriam ser os familiares ou pessoas próximas a reconstituir a sua vontade, numa decisão “que deve ser tomada também em conjunto com o médico”.