A vida e morte Vincent Lambert deixou de ser um caso clínico é uma guerra jurídica
Desde 2008 que um ex-enfermeiro francês está em estado vegetativo, algo mais grave ainda que o coma. A família está dividida, os pais recusam-se a deixá-lo morrer e apelaram a um comité da ONU. Há um conflito de tribunais e até o Vaticano entrou na discussão.
A longa tragédia de Vincent Lambert, há 11 anos em estado vegetativo permanente, parecia estar a chegar ao fim, mas não. Houve mais uma reviravolta de última hora na guerra jurídica em que se tornou o caso este ex-enfermeiro de 42 anos: um tribunal de recurso de Paris ordenou esta terça-feira que lhe fosse restabelecida a alimentação e hidratação artificiais, apesar de ter lesões cerebrais que os médicos consideram irreversíveis.
A família de Vincent Lambert está dividida e há mais de uma década que combate na justiça pela sua vida e morte. De um lado, os pais e seis irmãos, uma família profundamente religiosa e próxima dos meios católicos integristas, da Opus Dei, profundamente conservadores. Do outro, a mulher, alguns irmãos de Vincent, e outros familiares.
Os pais não aceitaram a decisão dos médicos do hospital de Reims onde o doente está internado de parar com todo o apoio à vida. Apelaram até ao Presidente francês, Emmanuel Macron, que recusou imiscuir-se neste caso, mas conseguiram fazer valer a sua posição no tribunal de recurso, baseando-se numa posição de um organismo das Nações Unidas.
Os juízes emitiram a sua decisão já durante a noite de segunda-feira. O tribunal “ordena ao Estado francês que faça tudo o que seja necessário para fazer respeitar as medidas provisórias exigidas pelo Comité Internacional das Pessoas Portadoras de Deficiência [organismo das Nações Unidas a que os pais também apresentaram um recurso] a 3 de Maio de 2019 para que seja mantida a alimentação e a hidratação”, segundo uma citação reproduzida pelo jornal Le Monde.
"Ganhámos!"
Os advogados dos pais de Lambert celebraram este passo atrás como uma vitória nas eleições, ou até num jogo de futebol: “Ganhámos! É o princípio de muitas vitórias”, afirmou um entusiasmadíssimo Jean Paillot, perante uma pequena manifestação pró-vida à porta do hospital. Rachel Lambert, mulher de Vincent, que está do lado dos médicos e defende o direito a deixar morrer o seu marido, diz que vai apresentar queixa contra o médico.
Esta terça-feira, o site da revista de direita Valeurs Actuelles divulgou um vídeo em que Vincent Lambert surge a piscar os olhos – algo que pode acontecer a um paciente em estado vegetativo e não é prova de consciência – e em que se ouve a sua mãe a dizer “não chores”. A advogada de Rachel Lambert anunciou que também isto será alvo de queixa.
Os advogados dos pais querem agora transferi-lo hospital para uma instituição de cuide de deficientes, pois ele “não está doente nem em fim de vida”, afirmou jean Paillot.
O Vaticano, entretanto, emitiu uma nota sobre o caso, em que reclama “soluções eficazes para proteger a vida” de Lambert.
Os pais de Vincent Lambert recorreram ao Comité Internacional das Pessoas Portadoras de Deficiência da ONU já depois de terem accionado múltiplos tribunais, a nível nacional e internacional. No entanto, o Estado francês, frisou a ministra da Saúde, Agnès Buzyn, não está obrigado legalmente a acatar recomendações deste comité da ONU, recorda o diário.
Paris defende “o direito do paciente a não sofrer a obstinação irrazoável” de tratamentos médicos, como estabelece a Lei do Fim de Vida de 2 de Fevereiro de 2016, também conhecida como Claeys-Leonetti. Esta lei reafirma o direito do doente à paragem de todos os tratamentos, para evitar o também chamado “encarniçamento terapêutico”.
Outra coisa prevista nesta lei, criada demasiado tarde para poder valer a Vincent Lambert, é o testamento vital – a designação do documento que, em Portugal, permite ao cidadão designar quais os cuidados de saúde que pretende ou não receber e também nomear a pessoa que será o seu “procurador de cuidados de saúde”.
Na ausência desta determinação clara da sua vontade, está em suspenso há mais de uma década o destino deste homem que, em resultado de um acidente rodoviário ficou num estado de inconsciência que suscita muitas interrogações e questões éticas, ainda por cima quando as melhores práticas médicas colidem com fortes convicções religiosas.
O caso passou para os tribunais, e agora mais do que uma questão médica, a discussão é jurídica, e põe em confronto tribunais administrativos e judiciais.
Os pais de Lambert já tinham esgotado os recursos a tribunais nacionais e estrangeiros: em 2014, a mais alta instância judicial francesa validou a decisão dos médicos que dizem ser um sofrimento inútil manter o doente ligado às máquinas, deliberando a favor da mulher e dos irmãos de Vincent que gostariam que fosse desligado do apoio artificial de vida. Os pais do francês recorreram para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que no ano seguinte concluiu que a paragem da prestação de cuidados não seria um atentado contra o direito à vida.
Mas o fundamento do tribunal de recurso é o apelo que os pais fizeram ao Comité Internacional das Pessoas Portadoras de Deficiência da ONU. Esta instância considerou que o Estado francês violou o direito à vida, um direito fundamental – contrariando a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. E, além disso, entrou o campo dos juízes administrativos, explica o jornal Le Monde.