É o fim de um mundo: o trabalho tal como Ken Loach e Lech Kowalski o conheceram
Um filme da competição, Sorry We Missed You e outro da Quinzena dos Realizadores, On va tous péter, descrevem o capitalismo actual: insegurança, precariedade, desumanização.
“Não é a crise do capitalismo, é o capitalismo em toda a sua força”. Ken Loach, Cannes 2019. Há três anos, ao receber a Palma de Ouro por Eu, Daniel Blake, filme que se sentira obrigado a fazer porque o mundo chamava-o e pelo qual quebrara a reforma que se impusera após O Salão de Jimmy (2014), o cineasta britânico era a voz de um dos mais vibrantes discursos políticos de Cannes: sobre “o perigo do mundo em que vivemos”, sobre a necessidade de o cinema denunciar o “neoliberalismo crescente”, sobre, chispa utópica que existe em Loach, a possibilidade “de outro mundo”. Três anos depois, o mundo tal como o conhecemos continua a exigir dele que dê conta do mundo que conheceu.
Irmão de Eu, Daniel Blake, Sorry We Missed You, de novo escrito por Paul Laverty e de novo filmado em Newcastle, Norte de Inglaterra (cidade de humor e de generosidade formadas, explicou o cineasta na conferência de imprensa, pela tradição de luta do operariado da indústria mineira e da construção naval, entretanto desaparecidas), fez ouvir na competição de Cannes um “he did it again”. Isto é, a capacidade de, de novo, estar à altura das pessoas, um humanismo que, cinematograficamente, é um boletim de um mundo que não é aquele que domina hoje os ecrãs.
As comparações entre os dois filmes começaram, aliás. Aponta-se por exemplo uma mais variada paleta expressiva em Sorry We Missed You, o que o tornaria mais “equilibrado” – isto para os que consideram que Eu, Daniel Blake era algo dogmático, até propagandístico em termos expressivos.
Quando se fala na “militância” do cinema de Loach, quase sempre para o desvalorizar, esquece-se que é o realizador de Cathy Come Home (1966), Kes (1969) ou Family Life (1971): ou seja, e isso percorre os seus filmes, que a dimensão familiar e íntima é o seu território de resistência. Porque é sempre ameaçado, como neste último filme que Loach realiza aos 82 anos, e em que Ricky, farto de saltar de emprego em emprego, decide que “é agora ou nunca” o momento de deixar de estar à tona de água em perigo de afogamento: convence a mulher, Abby, a vender o carro, de que depende para o seu trabalho de prestar cuidados a idosos, para que ele possa comprar uma carrinha e tornar-se condutor freelance, respondendo ao desafio de uma empresa de entrega de encomendas ao domicílio.
Ricky vai ser independente, acenam-lhe. Vai ter é de comprar, ou de alugar à empresa, a carrinha. E de cumprir rigorosamente os horários e objectivos, monitorizados pela tecnologia, sob pena de sanções. Tem de arcar ele com todos os riscos. Mas vai ser “independente”.
A correria das personagens, o suspense em relação à eficácia dos seus actos e gestos para impedir a catástrofe (não é por acaso que de novo se referencia o neo-realismo italiano e concretamente Ladrões de Bicicletas, de Vittorio De Sica), o retrato da “family life” têm aqui mais um momento de milagrosa verdade, pela justeza dos actores, Kris Hitchen e Debbie Honeywood, o pai e a mãe, que não são profissionais, que não são também as personagens, mas que... “são”.
Este mundo do trabalho tal como hoje o conhecemos – insegurança, precariedade, desumanização, território onde, diz o cineasta, “se semeia a direita” –, diferente daquele em que Loach começou e em que, como ele diz, se arranjava um trabalho para a vida e para proteger a família, vai ameaçar de desagregação o casal e os seus dois filhos. Começa por separá-los (porque nunca se encontram, nunca falam, a não ser através da tecnologia). Finalmente, encerra-os em prisões sem saída. O filme nunca concretizará uma catarse – é uma das suas forças, um tom diferente do lindíssimo Eu, Daniel Blake. A vida continuará: Ricky a chorar dentro da sua carrinha, o seu trabalho, a sua prisão.
A França em guerra
No outro extremo da Croisette, na Quinzena dos Realizadores, há ecos de uma mesma melancolia. Lech Kowalski, 70 anos, nascido em Londres, filho de refugiados polacos, mostra os trabalhadores que resistem à porta de uma fábrica, ameaçada de liquidação judicial (e eles de despedimento), como se fossem os Sex Pistols ou cantores de blues, “rejeitados” – a comparação é do próprio, documentarista da contracultura, autor de um documentário sobre o princípio e o fim do punk rock, DOA: A Right of Passage (1978-1981).
Em 2017, quando estava já na rua a campanha eleitoral que levaria Macron à Presidência da República francesa, Kowalski passou sete meses junto de 277 trabalhadores de uma fábrica de componentes para automóveis, a GM&S, que, antes da infância do movimento dos “gilets jaunes”, puseram o seu protesto na rua. Ameaçavam mandar tudo pelos ares para trazer o interesse mediático à sua causa. On va tous péter é o título do documentário, aliás, que é menos uma incitação à violência do que desesperado canto de cisne – por isso a comparação, do realizador, com o punk, aquilo que mal começou e logo acabou. O filme está perto da raiva e da melancolia desses homens (cem acabaram por ser despedidos), rostos que, para Kowalski “representam o fim de uma época”, como disse em entrevistas à imprensa francesa. Onde falou da luta que agora se trava entre “o humanismo e a ditadura pós-democrática composta por um governo fraco e por vários interesses comerciais internacionais”.
“Vejo a França como um país em guerra contra si próprio”. Sim, logo ali na sala de cinema, antes da apresentação de On va tous péter. Um texto do colectivo Yellow Submarine (formado por signatários do mundo da cultura, em solidariedade para com os coletes amarelos) ali divulgado, denunciando manobras de desacreditação do movimento e aumento de repressão, foi recebido com exasperação, e depois com protestos sonoros, num despique entre uma parte dos espectadores e as palavras, progressivamente mais enfáticas, e também mais solitárias, de quem na leitura se apresentou como “je suis un gilet jaune”.