Onde pára o ativismo estudantil? (I)
Quais são as “causas” que poderão agitar uma juventude a que chamam millenials mas para quem uma década é já tão longínqua como um milénio?
No passado mês de abril comemoraram-se em Portugal dois acontecimentos de grande importância social e histórica, com destaque para os 45 anos do 25 de Abril. O segundo foi a celebração dos 50 anos do 17 de abril de 69, em Coimbra, o momento que desencadeou a explosão de uma geração de jovens universitários em revolta contra a degradação do ensino, a ausência de liberdades e a guerra colonial. As cerimónias decorreram exatamente no mesmo local, com o ex-líder Alberto Martins a lembrar os acontecimentos, num discurso elegante, sincero e emocional, enquanto o antigo presidente da Assembleia Magna de 69 (Décio de Sousa) interrompeu a sessão com um novo “Peço a Palavra”, num gesto que imprimiu ainda mais sinceridade ao ato, recordando aquela que foi – seguramente até aos dias de hoje – a mais participada assembleia de estudantes da Universidade de Coimbra (28/05/69) quando se decidiu a greve aos exames.
Porém, a atual geração estudantil não estava lá. Apesar da invocação repetida – ritualizada e apologética, mas amplamente distorcida – desses momentos marcantes do movimento estudantil, cinco décadas depois, a memória esbate-se na sucessão das gerações e tudo se confunde. De resto, como tem sido apontado por historiadores do tema (Miguel Cardina, por exemplo), alguns levantamentos e inquéritos mais recentes aplicados aos estudantes comprovam as “imagens erradas” dos acontecimentos de 69. Por exemplo, a ideia de que “a ‘crise’ foi despoletada pelo aumento de propinas ou a funda convicção de ter existido uma manifestação nacional durante esse período...; ou ainda a referência que por vezes é feita ao “Maio de 69”, não porque percebam que o movimento iniciado em 17 de abril teve prolongamentos no mês seguinte, mas tão só um reflexo da confusão instalada entre a crise académica de Coimbra e o Maio de 68 de Paris.
É com este legado histórico em pano de fundo, qual retrato esmaecido no nevoeiro do tempo, que podemos hoje colocar em equação os desafios da geração atual e interrogar-nos sobre as suas motivações, referências e comportamentos. Quais são as “causas” que poderão agitar uma juventude a que chamam millenials mas para quem uma década é já tão longínqua como um milénio? Claro que esses acontecimentos jazem nas profundezas do esquecimento da atual geração, apesar do seu impacto no imaginário de várias gerações, a contrastar com os atuais banhos festivos que enchem a avenida central da cidade (de gritaria, cerveja, vómitos e outros fluidos) nas festas académicas, mas se esfumam nos consumos quotidianos.
Se a palavra “causas” perdeu a sua aura política com o correr do tempo, podemos incutir-lhe um novo sentido, mais lato, e considerar que em lugar da dissensão cultural, da pulsão rebelde e das referências político-ideológicas, estão hoje motivações e subjetividades de outra natureza, centradas sobretudo nos prazeres imediatos. Não se deve, no entanto, ignorar que também a ausência de “causas” se reveste de contornos ideológicos e tem, por isso, efeitos políticos nas suas consequências. Olhando para as modalidades de ocupação do tempo, para os contornos do associativismo académico e para os modos de vida dos jovens estudantes de hoje, é possível traçar um olhar sociológico da atual geração, também ele iluminado pelo atual contexto académico de Coimbra.
A observação atenta de mais de três décadas sobre o universo estudantil da cidade permite-me apresentar uma breve tipologia de atitudes, para ilustrar a diversidade de representações e modos de vida (outros falarão de “habitus”) dos estudantes. Podemos partir do pressuposto de que os jovens são, de um modo geral e em sentido amplo, “ativos”, ainda que esse “ativismo” se afaste do campo político ou cívico. Seja como for, faz sentido pensar esses padrões comportamentais – “tipos ideais” – de sociabilidade inseridos em diferentes escalas de análise. Podemos, por exemplo, partir de um nível mais politizado, no sentido de uma consciência cívica e cultural mais aguda, a que se seguem outros níveis progressivamente mais afastados do “ativismo”, até um nível mais alheado, atomizado e fora do campo político e da “coisa pública”, por assim dizer. Por outras palavras, entre um ativismo mais intenso e radical e a zona mais distante, indiferente, “apolítica” e massificada do corpo estudantil existem diversas modalidades intermédias.
Um primeiro nível situa-se no plano individual. Socorro-me de uma situação concreta, uma iniciativa pessoal, surpreendente, radical e imbuída de uma vontade e de uma consciência crítica pouco comum nos tempos atuais entre a nossa juventude. Paradoxalmente, apesar de desencadeada por um indivíduo singular, esta ação exprime uma crítica ao individualismo, à apatia associativa da maioria, e ao mercantilismo consumista. Isto prova que há alguns jovens “menos iguais” do que outros; mostra que existe potencial em alguns círculos, embora por vezes fechados sobre si mesmos. Este é um exemplo, talvez desesperado, de alguém com a consciência plena da hegemonia mercantilista que se apoderou do sistema de ensino, incluindo das universidades.
Um estudante de Coimbra entrou em “greve às aulas”, uma greve que parece situar-se nos antípodas das causas e do movimento estudantil dos sixties, mas que, se virmos bem os seus argumentos, talvez não esteja tão distante da contestação de há 50 anos atrás, antes assenta numa “causa” hoje impercetível para a maioria de nós (professores, estudantes e sociedade em geral), até por assumir-se como um ato isolado. Este jovem assinou um “manifesto”, longo e elaborado, que começa com a seguinte passagem: “Serve este manifesto para educar. Para tornar palpável uma sociedade que nos pintam distante mas que está mesmo ao nosso alcance; para tratar a educação por tu e a tornar o pilar fundamental da nossa sociedade; para ultrapassar as barreiras da injustiça social e do formalismo académico e trazer o conhecimento de forma clara a todos os que queiram aprender – porque a vida é uma aprendizagem, onde todos são contínua e simultaneamente, professores e alunos. É preciso definir um rumo novo para a educação: um rumo que reflita os ideais democráticos porque nos dizemos bater: liberdade, igualdade e fraternidade.”
Há várias semanas que se senta diariamente em frente à Faculdade de Letras, onde é estudante. Comentei o assunto na rádio local e posteriormente fui contactado por este jovem que assumiu a sua identidade, explicando no entanto que não busca protagonismo pessoal. Está inscrito num programa de mestrado naquela faculdade (tendo concluído recentemente a licenciatura), mas critica a universidade e o poder político porque, afirma, o ensino superior é dispendioso e não garante o acesso livre a todos os que pretendam estudar, mas também porque assenta numa lógica “clientelar” e mercantilista que domina a universidade pública.
Muito embora, à partida, a iniciativa pareça dotada de contornos algo “quixotescos”, o seu discurso consistente e lúcido merece ser levado a sério, além do mais, já contagiou outros colegas, que começam a segui-lo nesta iniciativa. O atual presidente da AAC afirmou publicamente estar interessado em ouvir e responder ao estudante grevista, mas, embora frequente diariamente a mesma faculdade, segundo me confessou o grevista, “até agora a resposta é um muro de silêncio”.
Este é um tipo de “ativismo” de iniciativa individual mas cujo potencial cívico pode crescer. No próximo artigo pretendo caracterizar os outros “tipos-ideais” e contextos da vida estudantil de Coimbra, a partir dos quais é possível captarmos o leque (heterogéneo) de segmentos, motivações e lógicas de ação que definem a atual juventude universitária. Atentar nos modelos de consumo e nas subjetividades deste setor é tanto mais necessário porquanto – não apenas como estudantes mas na vida adulta que os espera – serão estes os protagonistas centrais da nossa esfera pública e da atividade institucional no futuro próximo. A segunda parte deste artigo será publicada na próxima quinta-feira
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico