Os 60 são os novos 40
A mudança da mentalidade acerca do envelhecimento antecede e é mais crucial que a própria reforma do sistema previdenciário.
O autocarro invade a casa humilde e “apanha velhinha de 42 anos” reporta em manchete um jornal em edição do dia 4 de Agosto de 1960. Hoje, quem toma conhecimento manchete, se esquece da sorte da pobre mulher para achar graça do fato da mesma ter sido referida como “velha”.
No ano daquela notícia, a esperança de vida à nascença em Portugal era de 60,7 anos para os homens e 66,4 anos para as mulheres. Entretanto nos anos 1970 uma revolução demográfica mundial teve início e alargou de forma extraordinária a esperança de vida à nascença, de tal forma que, em Portugal, em meados da atual década, já atingimos a marca de 77,7 anos para os homens e 83,4 anos para as mulheres.
Infância, juventude, vida adulta, velhice sempre foram fases da vida humana muito bem demarcadas ao longo de milhares de anos. Mas a partir dos anos 70 a marca de entrada na velhice tornou-se móvel. Tacitamente referenciada hoje nos 80 anos, a marca de início da velhice inicialmente em 60 já esteve em 65, 70 e 75 anos.
Isso porque a aceleração da longevidade é maior para os que estão acima dos 60. Os demógrafos concluíram que, do ponto de vista global, a longevidade para quem tem 65 anos especificamente cresceu 20 (vinte) vezes mais rápida entre 1970 e 2011 do que entre 1841 e 1970. Do ponto de vista prático quem nasceu após a década de 1960 foi contemplado pela loteria da longevidade com mais de duas décadas.
Ocorre que as pessoas não apenas passaram simplesmente a viver mais anos. Não é uma questão meramente etária. Do ponto de vista biológico a velhice foi de fato empurrada para mais tarde. Na média e atualmente indivíduos acima dos sessenta são muito mais saudáveis se comparados aos da mesma idade da metade do século 20. Podem ser apontados como principais fatores desta gigantesca conquista da espécie humana a drástica redução do tabagismo; a redução do sedentarismo graças à disseminação de hábitos de exercícios físicos; alimentação mais saudável, por exemplo, com a redução do sal e a democratização de atendimento médico-hospitalar.
De forma paralela ao aumento da longevidade um outro fenómeno social extraordinário se desenvolveu a partir dos anos 70. As mulheres, cada vez com mais acesso à educação e a métodos contracetivos diversificados, mais eficazes e mais baratos, rapidamente conquistaram transformar a maldição da gravidez indesejada em maternidade com escolha. Basta olhar a evolução da taxa de fecundidade das mulheres constatados pelos demógrafos: em Portugal, 3,2 filhos em 1960 e 1,37 filho em 2017.
Ocorre que as boas notícias das transformações demográficas e sociais resultantes da combinação do aumento da longevidade e da redução da fecundidade acabaram por gerar más notícias: o desequilíbrio estrutural do um sistema de pensões. Pensões, criadas ao final do século 19, foram políticas públicas concebidas para tempos de altas taxas reprodutivas e visavam proteger fundamentalmente homens que envelheciam muito cedo, principalmente por que se estuporavam em trabalhos, que em sua maior parte exigia um enorme vigor físico em fazendas, minas, portos e outras atividades; ocupações que de fato precipitavam a entrada do indivíduo na velhice aí pela quinta década de sua existência.
Século 21: o sistema de pensões tornou-se anacrônico e insustentável para qualquer nação. No limite há risco real de que nossos filhos e netos já não encontrem mais como prover seus os anos de necessidade se seguirmos uma equação que não dá conta da longevidade e da fecundidade.
A discussão posta pelos políticos neste sentido elenca tradicionalmente três alternativas: o aumento progressivo da idade da reforma, o aumento da contribuição pelos trabalhadores e a redução dos proventos dos reformados. É óbvio que quaisquer das três alternativas desagradam a gregos e troianos, dado que representam inequivocamente perdas.
A tentativa de tentar salvar o sistema previdenciário considerando exclusivamente essas três alternativas é como retirar água de um navio que afunda com velocidade menor do que a água que está a entrar pelo furo no casco. É preciso aprofundar a discussão e dar relevo a uma série de argumentos novos. É tempo de colocar o foco em fatores ligados a mudança de estilos de vida e igualmente de mentalidade dos indivíduos e da sociedade como um todo. A reforma do sistema de pensões deve ser contextualizada na reforma da mentalidade dos indivíduos.
Em primeiro lugar precisamos contemplar a nova natureza do trabalho em nossa sociedade atual em que a força humana não é mais um requisito a considerar. Cabe mesmo olhar mais à frente. Principalmente agora que uma nova perspetiva do trabalho começa a se delinear, na medida em que a década de 2020 será marcada pela inelutável penetração da tecnologia de inteligência artificial (IA).
Neste contexto, todo trabalho repetitivo e rotineiro e que possa ser descrito por um algoritmo, será paulatinamente transferido para sistemas de IA. Paralela e simultaneamente o trabalho humano será redefinido. Seremos cada vez mais resolvedores de problemas e a atividade criativa de nossos neurônios será a principal força motriz da economia.
Na perspetiva de uma nova mentalidade que começa se desenhar a reforma por tempo de serviço passa a ser anacrônica e injustificável, sobretudo se contempla tão expressivamente indivíduos que têm ainda pela frente algo como um quarto de sua vida produtiva.
Esqueça por um momento a sociedade como um todo e pense agora só no indivíduo: o desligamento de uma pessoa da vida produtiva colaborativa e contextualizada no mundo do trabalho potencializa efeitos colaterais perversos para a saúde física e mental do indivíduo. Longe de ser um descanso dourado, a reforma é o inferno do ócio. É um ostracismo da vida social e produtiva para quem ainda tem muita vida pela frente.
Um indivíduo desligado da produção perde progressivamente as conexões da tessitura social, as quais estão fora das relações puramente afetivas. Um ser sem inserção social produtiva está no limiar de um círculo vicioso de envelhecimento com declínio da qualidade de vida: perda de autoestima, diminuição e desaparecimento da libido, aumento das doenças físicas e mentais, como declínio de funções cognitivas, depressão e demência. (É fato que homens são os mais penalizados com esse declínio, posto que não diversificaram suas energias e interesses, como as mulheres fazem ao longo de suas vidas, tradicionalmente com outras ocupações além da vida produtiva estrito senso, ocupadas também com cotidiano doméstico, filhos, netos e amigas.)
Adicionalmente ao desligar-se da vida produtiva, principalmente onde a inovação tecnológica é acelerada, o indivíduo perde a capacidade de se atualizar no uso de novas ferramentas. É no ambiente das organizações, a trabalhar que estamos a aprender constante e colaborativamente, o que nos assegura estímulos para manutenção da capacidade cognitiva, tão importantes quanto exercícios físicos.
Os 60 são os novos 40 é um slogan que prenuncia uma profusão de novos estilos de vida e comportamento que já estão a ser criados. E a reforma do sistema de pensões? Cada vez mais ficará claro que a aposentadoria é para os vulneráveis. Há que seguir ativo e produtivo para de fato ter qualidade de vida.