Samora Machel Jr. acusa Presidente de tirania e ensombra reunião da Frelimo
O duelo entre filho de Samora Machel e Filipe Nyusi, o actual Presidente moçambicano, sobe ao palco este fim-de-semana. O desfecho é imprevisível. O desafio do filho do “camarada Samora” é um abanão inédito. Quem ganhar, ganha o partido.
Samora Machel Jr. está a preparar-se para entrar na reunião do Comité Central da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), que começa esta sexta-feira e acaba domingo, e contar espingardas. Desse medir de forças, decidirá se avança e desafia o actual líder do partido e Presidente da República, Filipe Nuysi.
A seis meses das eleições gerais, “o natural seria não colocar em causa o chefe da Frelimo”, disse ao PÚBLICO Fernando Jorge Cardoso, especialista em assuntos africanos e investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, em Lisboa. Nesse sentido, a reunião dos próximos três dias é inédita nos 44 anos de poder do partido.
Analistas e politólogos moçambicanos ouvidos pela Lusa em diferentes partes do país falam de “descontentamento” interno e num partido transformado em “palco de guerras de egos e grupos de interesses”, “grave crispação” e risco de cisão.
O professor do ISCTE, ex-quadro da Frelimo após a independência, pensa que “Samora Jr. não quer criar uma Frelimo II”, mas sim “tomar o poder por dentro”. “Ele é filho de Samora Machel [primeiro Presidente do país] e tem o apoio na mãe, Graça Machel, mas sobretudo sente-se filho da Frelimo e diz que esse é o seu partido”, diz Cardoso. Na leitura do professor, “não é provável que avance, mas é possível”. No jogo de xadrez, Cardoso antecipa um cenário de tudo ou nada: “Se Samora Jr. não avança agora, perde o pé, porque o Presidente Nyusi nunca esteve tão fraco.” A principal razão é o escândalo da dívida escondida de dois mil milhões de dólares. “Mesmo que Nyusi não esteja envolvido, está institucionalmente enfraquecido.”
O comité central da Frelimo vai reunir-se na Escola Central do Partido, na Matola, província de Maputo, e esta será a última reunião antes das eleições gerais de 15 de Outubro. Há dois anos, no 11.º congresso, a Frelimo escolheu Nyusi como candidato do partido.
O comité central é composto por 180 membros. “A resposta está nessas 180 pessoas e a quem elas devem obediência”, resume Fernando Jorge Cardoso.
O apoio explícito de Graça Machel ao filho é relevante, pois a viúva do primeiro Presidente moçambicano “mantém uma posição forte do ponto de vista ético e de apoio popular”, diz o investigador e, além disso, com ela estão muitos líderes do partido. “Mas é possível que Samora Júnior queira avançar e que arranjem uma manobra administrativa de bastidores para o impedir.”
A corrupção interna na Frelimo está no centro do duelo Samora Machel Jr. e Filipe Nyusi. “Samito”, como é conhecido, acusou o Presidente da República e líder da Frelimo de violar os estatutos do partido e promover uma “campanha anti-democracia e anti-regra” e propôs a abertura de um processo disciplinar ao líder.
Num documento de 44 páginas a que o PÚBLICO teve acesso, Machel Jr., que é membro do comité central da Frelimo, expõe a sua defesa contra um processo disciplinar interno que pode terminar na sua expulsão do partido.
Na defesa, Machel Jr. acusa “o camarada Presidente” de ter “usado e abusado das suas funções” ao dar instruções para que a sua candidatura às autárquicas de Agosto “fosse retirada”; diz que “houve um notável enchimento de urnas” no comité de Maputo na eleição para o cabeça de lista do partido na capital, e que o primeiro secretário da Frelimo “manipulou o processo pré-eleitoral”. Machel Jr. acusa ainda Nyusi de “não permitir” aos membros do partido “a mais ampla liberdade de crítica e de opinião”; de “não estimular o diálogo” e de “não reconhecer aos membros o direito de consulta” e “concertação de opiniões para a exposição de ideias”. “A imagem da Frelimo é todos os dias agredida pelo camarada Presidente do partido Filipe Jacinto Nyusi”, escreve Machel Jr..
Em Agosto de 2018, Samora Machel Jr. formalizou a sua candidatura às eleições autárquicas como candidato da AJUDEM (Associação Juvenil para o Desenvolvimento de Moçambique) para Maputo. Acusado de violar os estatutos da Frelimo, em particular os dos dirigentes, pois ele é membro do comité central, “Samito” defende-se dizendo que o fez “para evitar a instalação da tirania dentro do partido”. Só quando “ficou claro que o Presidente da Frelimo e o secretário-geral pensam que a Frelimo é a sua vontade” e “quando ficou patente que, sem qualquer justificação, mesmo que implausível, não podia concorrer como candidato a candidato dentro dos órgãos do partido”, é que avançou para a AJUDEM.
Diz também que a AJUDEM não é um partido político, mas uma associação de jovens que “congrega muitos membros da Frelimo” e que quer combater a corrupção em Maputo. Sugerindo que tem uma base forte de contestação, diz que se candidatou porque “muitos camaradas queriam que concorresse”. Se desafiar Nyusi nos próximos dias, é provável que use muitos dos argumentos expostos neste documento. É aqui que diz ter “provas cabais” dos “vários crimes e ilícitos eleitorais” que levaram à exclusão da AJUDEM pela Comissão Nacional de Eleições.
Machel Jr. acusa ainda o secretário-geral da Frelimo, Roque Silva Samuel, de “mandar instaurar” o processo disciplinar contra ele, quando os estatutos do partido não lhe atribuem esse poder. E que o Comité de Verificação do Comité Central não “observou os procedimentos fixados no regulamento” para abrir um processo disciplinar, como a audição do acusado, “tomada de declarações e produção de provas”, “elaboração da nota de acusação” e entrega de cópia ao acusado. “Samito” Machel diz que houve “abuso de funções” e que a “devida ponderação e tolerância, garantindo justiça, imparcialidade e isenção’”, prevista nos estatutos, foi “prejudicada”.
Na acusação que enviou ao Comité Central a 29 de Março — e cujo texto acaba com um enfático “Independência ou Morte, venceremos! A Luta Continua!” — “Samito” Machel pede ao instrutor que proponha ao comité central que “se faça a justiça de acordo com os princípios do partido”, “que não se faça justiça de acordo com vontade maquiavélica”, e que “a história vai julgar quem se junta e se subjuga aos tiranos que nos querem escravizar”.