Cabras, política e (maus) sinais
Tal como qualquer outro fim em democracia, a protecção dos animais selvagens não pode ser contaminada por preconceitos ou ideologias.
Focadas no Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG), as I Jornadas Internacionais sobre Sustentabilidade Económica dos Espaços Ordenados e Protegidos, previstas para 13 e 14 do corrente mês em Arcos de Valdevez, foram suspensas devido a factores lamentáveis.
As jornadas (com a presença confirmada de dois membros do Governo português e um da Junta da Galiza, e a participação de personalidades de referência nacionais e estrangeiras) destinavam-se a reflectir sobre a forma como países e culturas diferentes conjugam nesses espaços (normalmente territórios deprimidos e de baixa densidade) a preservação dos habitats naturais e dos ecossistemas com a gestão dos recursos naturais, e influenciam as condições de vida das populações neles residentes.
Universidades, autarquias, economia e turismo, conservação e gestão de territórios ordenados e protegidos de vários países do mundo propunham-se construtivamente partilhar e melhorar o conhecimento a partir das suas experiências.
Um dos aspectos sectoriais da discussão seria naturalmente o da gestão dos recursos faunísticos, dos quais o mais emblemático no PNPG é, desde há 20 anos, uma população de cabras-monteses (Capra pyrenaica victoriae) proveniente do transfronteiriço Parque Natural Baixa Límia-Serra do Xurés (PNBLSX), na Galiza.
Censos recentes apontam para um efectivo superior a 700 indivíduos, que dentro de três anos rondará o milhar. Isto é muito bom, mas porá um dia problemas sérios relacionados com os limites da capacidade de carga dos ecossistemas e da disponibilidade alimentar dos seus habitats, e com a preservação da sanidade animal: se nada for feito para gerir cientificamente o excesso da população, surgirão doenças graves, extensíveis a cabras domésticas e outras espécies domésticas e selvagens, e prejuízos importantes ao nível da agricultura e dos valores naturais do PNPG (e.g. espécies de flora endémicas ameaçadas), enquanto o inevitável furtivismo se encarregará de roubar aos habitantes do PNPG uma riqueza que lhes pertence.
Do lado de lá da fronteira, no PNBLSX, a caça é permitida a todas as espécies, incluindo à cabra-montês. Do lado de cá, no PNPG, a caça não é proibida, mas a cabra-montês não se pode caçar por ainda ser considerada em Portugal uma espécie “criticamente em perigo”, embora felizmente os últimos censos evidenciem realidade diferente. As 23 associações de caçadores portugueses do PNPG e as cinco espanholas do PNBLSX estão na primeira linha da defesa responsável da biodiversidade.
Espanha, Áustria, Turquia, Paquistão ou Tajiquistão, países culturalmente muito diferentes entre si, resolveram estes problemas das subespécies de caprídeos que vivem nos seus parques naturais e nacionais (com enormes vantagens para homens, animais e natureza) através de uma gestão científica racional cuja principal ferramenta é a caça sustentável, exercida complementarmente com a predação natural do lobo ou dos grandes felinos, e enquadrada pela Carta Europeia da Caça e da Biodiversidade do Conselho da Europa, adoptada em 2007 pelo Comité Permanente da Convenção de Berna.
Nenhum outro instrumento de gestão é mais eficaz para manter a proporcionalidade desejável entre machos e fêmeas e entre adultos e juvenis, ou para eliminar selectivamente os indivíduos fenotípica e/ou genotipicamente indesejáveis. Nenhuma outra actividade gera mais valor nesses territórios deprimidos e melhora tão significativamente as condições de vida dos seus habitantes, graças às receitas do turismo cinegético e às contrapartidas económicas pela eliminação selectiva dos exemplares terminais cujos troféus são valorizados em 10.000 euros em Espanha (Capra hispanica) e na Turquia (ibex bezoar), e em 250.000€ no Tajiquistão (markhor).
Mas irromperam a (má) política e comportamentos censuráveis. A discussão serena de factos e argumentos não interessou a um grupo animalista radical, que decidiu utilizar as redes sociais para criar localmente um clima de tensão social, exacerbado pela convocação de manifestações e pelo exercício de pressões intimidatórias sobre populações e autarcas, manipulando demagogicamente a realidade — o populismo antidemocrático em todo o seu esplendor.
Mais grave ainda, decidiu instrumentalizar o debate quinzenal na Assembleia da República com a cumplicidade do único deputado de um partido ultraminoritário que — tomando as dores desse grupo, distorcendo sem pudor a verdade e lançando um grotesco anátema sobre os caçadores — exigiu publicamente do primeiro-ministro que exercesse a censura sobre as jornadas impedindo a presença dos dois membros do Governo anunciados. O primeiro-ministro respondeu-lhe que nenhum membro do Governo estaria presente.
Face a esta resposta e às atitudes dos que ao diálogo preferem os tumultos televisionados na rua, para eles provas de vida política mais valiosas do que a força da razão, e perante os (maus) sinais, aos mais diversos níveis, de fragilidade da nossa democracia perante as tentativas de imposição da ditadura do “politicamente correcto” por parte de aprendizes de “reizinhos” que vão nus, mas a quem os que deviam não têm a coragem de lhes dizer que o vão, as jornadas foram suspensas — mas hão-de ser realizadas.
Não confundimos o grupo em causa com outros movimentos genuinamente ambientalistas. Destes podemos discordar mutuamente, claro, mas sabemos ouvir-nos e sabemos respeitar-nos; e até sabemos que somos incontornáveis aliados, dialecticamente indispensáveis numa estratégia comum de conservação da natureza e da biodiversidade.
Haverá também muitos que se intitulam “caçadores” e não o são, porque não têm o comportamento próprio nem os princípios éticos conservacionistas do verdadeiro caçador do século XXI. Há que ter o desassombro de dizer que não fazem falta e que não têm lugar entre nós. Os tempos mudaram, o país urbanizou-se e alcatroou-se, o mundo rural mecanizou-se e perdeu (muita) gente. A cultura sobre a caça também tem de mudar: não haverá abundância nunca mais, o que existir terá de ser cuidado, cientificamente gerido e poupado, quem não o entender que mude de vida.
Tal como qualquer outro fim em democracia, a protecção dos animais selvagens não pode ser contaminada por preconceitos ou ideologias, nem deve utilizar a arruaça como meio, a intolerância como regra, a inverdade científica como padrão e a arrogância como atitude.
Pela nossa parte, nunca desistiremos da conservação como objectivo, da ciência como suporte, da caça sustentável como ferramenta, do diálogo como instrumento, dos outros como parceiros, da verdade como referência, da democracia como modelo.