André Santos e Marco Leão no bar de alterne
A dupla de realizadores que tem construído universo singular na intimidade das curtas-metragens, André Santos e Marco Leão, realiza a série de televisão Luz Vermelha, que parte das Mães de Bragança, o caso mediático do início dos anos 2000.
A Sela é “provavelmente o melhor dancing da Margem Sul”, indica um painel publicitário metros antes de chegar a este espaço em Pinhal Novo, Palmela, um “disco dancing bar”. É neste complexo que decorre a quinta das nove semanas de rodagem de Luz Vermelha, uma nova série da RTP que foi anunciada em Fevereiro como sendo sobre as “mães de Bragança”, o mediático movimento de mulheres que se insurgiram, no início dos anos 2000, contra as prostitutas brasileiras que existiam na cidade. Ainda não há data de estreia prevista.
O caso é de facto o ponto de partida, mas o objectivo não é contar a história como ela aconteceu. Nem haverá referências directas a Bragança. No contexto da ficção, o bar de alterne chama-se mesmo “A Sela”, assumindo-se o local de filmagem, se bem que tendo sido adicionado chão e luzes diferentes.
A série é escrita por Patrícia Müller e conta com a realização, em todos os 13 episódios, de André Santos e Marco Leão, a dupla que tem feito carreira nas curtas-metragens e assim se estreia em televisão. É a primeira vez que trabalham algo que não foi escrito por eles, André e Marco, realizadores que, com um percurso singular, marginal, circunscreveram um núcleo temático dedicado à intimidade, em títulos como A Nossa Necessidade de Consolo (2007), Cavalos Selvagens (2010), Infinito (2011), Má Raça (2013) ou Pedro (2017), e produzido também de forma familiar. As semelhanças entre esse universo e este projecto não são evidentes. “Foi um acidente bastante feliz, mas temos conseguido trazer algumas coisas dos nossos filmes para este universo”, conta André. “Tentámos procurar no guião onde é que poderíamos criar algo de nosso”, remata Marco.
Sempre a fugir ao realismo – “às vezes aborrece-me”, diz André; “é difícil tratares o realismo e seres justo e abrangente em ficção”, afiança Marco –, tentaram exagerar os arquétipos das personagens e adicionaram influências da cultura pop da viragem dos anos 1990 para os anos 2000. “Podiam ser quase action figures de si próprios”, diz André sobre as personagens. Ao longo da conversa, menciona-se Batman & Robin de Joel Schumacher, O Feitiço, o filme de adolescentes de Andrew Fleming, Clube de Combate de David Fincher ou o Marlboro Man.
André dá um exemplo: “Tens um bar de alterne chamado A Sela, em que um dono de bordel resolve ensaiar um show com um cavalo de plástico de tamanho real e com mesas.” A coreografia vem de “The Lilo”, uma dança que Lindsay Lohan tentou tornar viral no ano passado a partir da ilha grega de Mykonos. “Há assim toda uma ideia um bocado estouvada que vem do nosso imaginário”, avançam.
Uma nova experiência
O que é que André e Marco tinham que se adequava a esta série? Filipa Reis, produtora da Vende-se Filmes, responde: “Nada.” Queriam arriscar e “trazer alguém do cinema, com alguma frescura”, até porque, diz, estas séries da RTP “devem servir também para isso”.
Os realizadores, apesar de terem tido alguns meses de preparação, estão a aprender enquanto fazem. Habituados “a gravar quatro a seis cenas por dia”, os ritmos de televisão obrigam-nos a fazer mais do dobro. “Há bocado pensei que gostava de conseguir levar alguma da liberdade com que estamos a filmar aqui para o nosso cinema”, partilha André.
Pegaram numa história mediática, centrada em trabalhadoras do sexo, que nem sempre foram pintadas da melhor maneira. “Éramos mais miúdos, mas lembro-me de como isto ressoou”, comenta André. “O que acha interessante nesta história”, prossegue, era haver “quatro mães que se juntam numa espécie de cruzada contra a prostituição”, que afinal tinham “casamentos que não funcionavam, vidas infelizes com os maridos”. “Mas é mais fácil acharmos que o outro é o causador do problema”. Não querem, assegura, “criar ideias maniqueístas de mãezinhas boazinhas e prostitutas más, porque nada disso existe”.
“É importante pensar na escolha, na libertação sexual da mulher”, esclarece Marco. Os dois cineastas querem, segundo André, “dar liberdade aos trabalhadores do sexo e tirá-los da marginalidade”. O que acontece muito, dizem, na ficção. Marco conclui: “Marginalizas automaticamente, assumes que a escolaridade é menor, que o contexto social é pior. É importante pensar que nem todos os casos são assim.
O cenário do bar é “um bocado irreal”. Mas o que querem fazer é dar-lhe vida, “criar um universo onde estas pessoas existem”, para que os espectadores se possam relacionar com elas. “Porque somos todos iguais”, assinala André. Continua Marco: “Os dramas são os mesmos, as ambições são as mesmas. Os contextos são melhores ou piores.”
Joaquim Monchique, que já não fazia ficção televisiva em Portugal desde os anos 1990, interpreta o dono do bar de alterne. É uma personagem menos cómica do que aquilo a que nos habituámos a ver. “Foi um escândalo na época, na altura até devemos ter feito sketches sobre isto”, explica. Como preparação, viu uma reportagem recente sobre o assunto, em que o seu congénere da vida real dizia “uma coisa muito certa": “'Há muitos homens que não têm nem mulheres nem namoradas e precisam de beber um copo e se divertir’. Está certíssimo”, continua. “Mas talvez o mais certo que ele disse foi: ‘Elas todas estavam lá porque queriam trabalhar, não estava lá ninguém forçado.”
Cecília Henriques, actriz na série, diz que “estaria muito reticente em fazer uma coisa destas se fosse tratada por outras pessoas” que não Marco e André. Na trama, explica, há uma vítima de tráfico humano, mas aqui foge-se à tentação de todas as prostitutas serem vítimas, mostrando mulheres que fazem o que fazem porque querem.
Esta preocupação também se nota no elenco: Renata Ferraz, que explica que este é o primeiro trabalho televisivo que faz em Portugal, co-realizou um documentário sobre uma trabalhadora sexual. “É um privilégio poder representar essas mulheres super-guerreiras, super-fortes, que estão sempre escondidas e precisam de ter o seu trabalho respeitado”, menciona.
Não é só do realismo que os realizadores querem fugir. Não querem, também, cair no sensacionalismo e na nudez gratuita que poderia ser expectável de uma série com este tema. “O cinema continua a ser um meio dominado por brancos heterossexuais cisgénero, em que vês homens de 70 anos a filmar miúdas barely legal, de mamas ao léu, às vezes de formas completamente gratuitas. Pensámos ter uma abordagem diferente”, com nudez “no quotidiano”, sem “uma carga assumidamente sexual”. “Para quem está à espera de ver uma série cheia de mamas ao léu acho que vai ser uma frustração”, remata.