Anatomia de uma suíte com vista para as celas
O nome “Fortaleza de Peniche” era apenas um na lista a que quase ninguém deu.
O projecto de reconversão da Fortaleza de Peniche num hotel (presumivelmente de cinco estrelas) foi anunciado pelo então ministro da Economia Manuel Caldeira Cabral, em 2016, numa cerimónia solene em Coimbra, que assinalava o Dia Mundial do Turismo. Corrijo, não era apenas a Fortaleza de Peniche. Foi um conjunto de 30 imóveis do Estado que estavam abandonados e que o Governo decidiu concessionar a privados para que o património fosse recuperado. O nome “Fortaleza de Peniche” era apenas um na lista a que quase ninguém deu importância.
No dia seguinte, questionado pela comunicação social, o PCP reagiu com violência. Estava em estado de choque. Declarou “inaceitável” a concessão a privados de 30 monumentos nacionais, defendendo que, no caso do Forte de Peniche, isso significava mesmo “uma manifestação de desprezo para com a luta antifascista em Portugal” e “um dos mais significativos ataques à memória colectiva dos portugueses”. O assunto foi mesmo debatido entre Jerónimo de Sousa e António Costa, parceiros do governo de “geringonça”. Para os comunistas, tornou-se ponto de honra. E motivou também uma petição pública, entregue no Parlamento.
A ideia de hotel, que na proposta inicial do Governo poderia coexistir sem dramas com o antigo museu ali existente, foi rapidamente posta em stand by. De novo, com igual cerimónia, o então ministro da Cultura, Castro Mendes, anunciava a constituição de um grupo de trabalho para estudar o que fazer na antiga fortaleza de Peniche, que serviu de prisão do Estado Novo (entre 1934 e 1974), para onde eram encaminhados os opositores ao regime de Salazar, nomeadamente, militantes do PCP (Álvaro Cunhal este preso 11 anos em Peniche tendo protagonizado uma espectacular evasão em 1960 juntamente com outros dirigentes do partido). A conclusão foi a óbvia: a renovação do museu que ali existia (decrépito, sem meios ou ambição) era incompatível com um projecto hoteleiro. E na apresentação do Orçamento do Estado para 2019, o primeiro-ministro, António Costa, sublinhava que, com o “maior orçamento de sempre”, o Ministério da Cultura teria como um dos projectos prioritários o Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, em Peniche, num investimento estimado em 3,5 milhões de euros. De nota de rodapé, Peniche passou rapidamente (e bem) a desígnio nacional.
No final do ano passado, o Governo divulgou nova lista de património. Desta vez, incluiu na lista de edifícios devolutos a serem usados para o Plano Nacional de Alojamento do Ensino Superior (PNAES) o quartel da Trafaria. Tratava-se do antigo presídio militar da Trafaria, também usado como prisão política no Estado Novo? Não, afinal, era um edifício abandonado da GNR. Então e o Presídio da Trafaria? Ah, esse continua lá, abandonado há décadas, apesar de a sua propriedade ter passado do Estado central para a autarquia de Almada em 1980, quando ainda era presidida pela CDU. E projectos para o recuperar e abrir ao público antes que as paredes caiam? Não conheço.