Não tenham o desplante de dizer que Portugal não é racista

Negar o problema é a melhor forma de não o resolver.

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Como quase todas as pessoas em Portugal, foi-me ensinado na escola, e em casa, que os portugueses fizeram um colonialismo “bonzinho”, o dos ingleses, franceses e espanhóis é que foi “muito malévolo”. Não me demorou muito a perceber que me estavam a mentir, e mesmo que se faça um ranking de atrocidades, não impede que sejam todas atrocidades.

“Não julgues o passado com os olhos do presente”, dizem muitos, faz sentido, até certa medida, mas que a verdade seja conhecida com ou sem julgamentos, e sabendo que em alguns casos ainda há muitas pessoas vivas, vítimas do passado recente é o mínimo que temos que fazer, estou-me a lembrar do massacre na aldeia de Wiriyamu, em Moçambique em 1972, em que o exército português executou cerca de 400 inocentes, não combatentes, mulheres e crianças, e demorou 50 anos, a reconhecer a sua culpa nesta carnificina, ou então da condecoração de Marcelino da Mata que queimou aldeias inteiras do seu país, Guiné-Bissau, passeava-se com um colar de orelhas de humanos que matou em nome do Estado português, crimes de guerra que o próprio admitiu, e foi o português mais condecorado de sempre, e ainda recebeu honras de Estado do Parlamento português aquando da sua morte há três anos. Imaginem-se familiares das vítimas destes massacres.

Em Portugal há poucos dados, porque queremos fingir que não aconteceu, mas sem memória, não há justiça nem reconciliação. Nós matámos, violámos, roubámos, traficámos seres humanos, tudo para alimentarmos a nossa insaciável ganância.

Há uns anos, fui ao museu da história afro-americana em Washington, museu incrivelmente bem feito, onde vi bem documentada a informação de que nós portugueses fomos os primeiros e fomos os últimos a traficar negros de África para a América do Norte, e que o fizemos mais do que todos os outros europeus juntos. E não estava ali contemplada a América do Sul, que acrescentaria dados ainda mais gritantes das maldades do nosso passado, quando 50% dos escravos morriam na travessia do Atlântico e mesmo assim era um negócio muito rentável.

Foram 500 anos da nossa história, na qual também há acontecimentos interessantes e construtivos, mas em que fomos dos povos mais racistas do passado recente, e tenho pena que muito pouco se faça para contar este lado da história.

Muitas pessoas acham que a definição de racismo é individual, mas não é. A frase “eu não sou racista” não faz sentido, embora se compreenda que se use no léxico comum. O racismo é um conceito social, cultural, político e económico em que um subgrupo de pessoas é discriminado pelo sistema de um país. E é por demais evidente que nós, portugueses, nós Portugal somos um país racista, até porque não se apagam 500 anos de história em algumas décadas.

O Instituto Nacional de Estatística, em 2023, concluiu: “Mais de 4,9 milhões de pessoas (65,1%) consideram existir discriminação em Portugal e 2,7 milhões (35,9%) já testemunharam esse tipo de situações. Grupo étnico, cor da pele, orientação sexual e território de origem constituem os factores mais relevantes na discriminação percebida e testemunhada.”

Apesar de todos nós termos genes africanos, e ter sido em África que “nasceu” o Homo sapiens (somos todos “trinetos de pretos”), vejam bem o que a concentração de melanina (pigmento que escurece a pele) faz na alteração do comportamento humano e na igualdade perante a nossa sociedade.

A investigadora e antropóloga na Universidade de Coimbra, Ana Rita Alves, analisou os dados dos indivíduos que foram mortos pela polícia entre 1996 e 2020, e concluiu numa tese de doutoramento, que uma pessoa negra tem uma probabilidade 21 vezes maior de ser morta pela polícia do que uma branca.

“O último European Social Survey (ESS) de 2018/2019, um dos mais respeitados inquéritos europeus, não deixa dúvidas: 62% dos portugueses manifestam racismo. O inquérito mede o racismo biológico com as perguntas: “há grupos étnicos ou raciais por natureza mais inteligentes? há grupos étnicos ou raciais por natureza mais trabalhadores?” e o racismo cultural com a pergunta “há culturas, por natureza, mais civilizadas que outras?”

Mais “dados da vergonha” numa análise gráfica e simples da SIC-N (a ler) , dos quais destaco: “29% dos afrodescendentes vivem, em Portugal, em situação de carência habitacional (residência sem chuveiro e sanita ou demasiado escura, com as paredes ou as janelas degradadas ou infiltrações no telhado). A média europeia é de 5%.”

Eu não sei se o polícia que matou Odair Moniz era xenófobo, eu não sei se a ameaça que ele sentiu justifica ter disparado a arma, como qualquer pessoa honesta, eu só quero que se apurem os factos e se faça justiça. E claro, nada justifica o vandalismo a que assistimos, até é contraproducente para a luta contra o racismo, ao contrário da manifestação pacífica da organização Vida Justa, no sábado, que foi uma lição de cidadania.

Tenho o máximo de respeito e admiração pelas forças policiais, em particular pelos que têm que policiar bairros altamente problemáticos, e que correm riscos, pela segurança do nosso país. Como médico trabalhei anos no INEM e entrei nos piores bairros do Grande Porto, sei o que isso é. Mas que ninguém tenha coragem de dizer que Portugal não é um país racista.

Negar o problema é a melhor forma de não o resolver. Educar, integrar, desconstruir o racismo, apoiar as comunidades mais vulneráveis, apoiar as associações que promovem cultura, artes ou desporto, uma vida digna e continuidade nos estudos, e vamos todos viver mais seguros e num país melhor.

Nós, portugueses, somos racistas, só assumindo podemos melhorar.

As crónicas de Gustavo Carona são a favor dos Médicos sem Fronteiras

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