Amanhã na Batalha pensa em mim
A reabertura do Cinema Batalha virá finalmente alterar o ecossistema dessa praça onde, há demasiados anos, o São João combate só.
Um anjo pode agir como um bandido, sabemo-lo desde Jacob: dá-nos a sua bênção, mas deixa-nos a coxear para o resto da vida. O inverso também é verdade: um bandido pode agir como um anjo. Em ocasiões diferentes, dois meliantes assaltaram-me na Baixa do Porto puxando deste caridoso apelo: “Não tenhas medo.” É nestes exactos termos que os emissários alados das Escrituras se dirigem à Virgem e a José.
Lembrei-me destes episódios pitorescos há semanas, quando um jornalista do Telegraph visitou o Teatro São João para saber o que oferece um teatro, instalado num Monumento Nacional, aos milhares de turistas que diariamente visitam a cidade. Parece um cenário remoto, mas não passou muito tempo sobre aquele tempo em que era mais fácil encontrar um carteirista na Praça da Batalha (ou um querubim) do que um turista. Foi no início do séc. XXI, anos de chumbo na cidade: a Baixa esvaía-se de gente por volta das oito, o comércio encenava nas montras a sua ruína e a sua melancolia, os turistas não eram ocidentais – eram acidentais. A Batalha, onde a nação plantou o São João, não passava de uma versão lumpemproletária da praça de A hora em que não sabíamos nada uns dos outros, e a Rua Alexandre Herculano, onde o TNSJ me instalou como jovem assessor de imprensa, era a mais poluída artéria do coração da cidade, albergando uma garagem lúgubre da Rodoviária Nacional. O meu escritório ficava ali, num prédio soturno, viveiro de actividades dúbias no que toca a higiene e fiscalidade. Pouco depois, o Cinema Batalha reabria as suas portas, apenas para exibir o triste espectáculo de umas quermesses no foyer e uns almoços no terraço. Na época, não ocorreu a ninguém promover worst tours: o piorio estava por toda a parte, sendo acolhido com a resignação com que se recebe uma fatalidade, ou o acerto da conta da luz.
Esta digressão não conduz ao miradouro do turismo como a realização histórica de elevados ideais, nem pretendo desviar o olhar dos problemas complexos que a “turistificação” coloca hoje a muitas cidades. O meu assunto não é sequer o turismo, embora suspeite que aqueles que deploram os turistas não anseiam por regressar à cidade do passado. (Condição paradoxal: desejam a cidade criada pelo turismo, mas sem os turistas.) Pretendo antes lembrar a cidade num tempo a que só a nostalgia pode emprestar algum glamour. Num momento em que o TNSJ se prepara para celebrar o centenário do teatro de Marques da Silva, interessa-me ainda perceber como a actual condição do Porto, nomeadamente no que à cultura diz respeito, favorece não apenas a comemoração de uma efeméride desta importância, mas também – o que é mais decisivo – a própria renovação do TNSJ, inclusive no quadro da região Norte e do país.
Convém não esquecer que a desatinada extinção da Culturporto em 2007, depredando o Porto do seu teatro municipal, produziu danos colaterais na Batalha, obrigando o TNSJ a renunciar à sua vocação de produtor de artes cénicas para garantir a sobrevivência de um tecido teatral severamente castigado. A restituição do Teatro Municipal à cidade – e a vitalidade com que a câmara a realizou – representou para o TNSJ a recuperação de um parceiro-chave, com o qual deve fomentar uma concertação estratégica, como também lhe permite ampliar o raio da sua acção, afirmando-se como um instrumento relevante de uma verdadeira política de descentralização cultural a Norte.
Embora nos projecte para lá de 2020, a qualificada reabertura do Cinema Batalha – para cuja obra de reabilitação se lançou agora concurso público – é mais um construtivo gesto de demolição da “obra imaterial” legada pelo anterior executivo à cidade, e virá finalmente alterar o ecossistema dessa Batalha onde, há demasiados anos, o São João combate só.