Atestados que podem matar
O facilitismo reinante no licenciamento de obras de reabilitação de edifícios pode revelar-se mais gravoso do que as irregularidades nos atestados médicos.
Segundo um artigo que fez a primeira página do PÚBLICO de 13 de Abril, a Ordem dos Médicos entende que os clínicos de família não devem passar atestados para condução de veículos ou porte de arma aos utentes que a eles recorrem porque a emissão de tais atestados deve estar isenta de “impedimentos e suspeições”, o que poderá não acontecer em diversas circunstâncias.
Infelizmente, o problema não se circunscreve aos médicos. Em várias outras profissões reguladas, os atestados, declarações e termos de responsabilidade servem de base a autorizações, licenças e outras decisões processuais cujos efeitos, tal como a condução de veículos e o uso e porte de arma, podem envolver a segurança de pessoas e bens.
É o caso do licenciamento municipal de obras, em particular de reabilitação. De acordo com o respetivo regime jurídico, uma declaração do técnico autor do projeto de que são observadas as opções de construção adequadas à segurança estrutural e sísmica do edifício dispensa a câmara de qualquer verificação. Em consequência, a própria regulamentação camarária remete muitas das decisões para relatórios e pareceres assinados por engenheiros. Por exemplo, no caso da Câmara Municipal de Lisboa, que põe à disposição dos promotores a Via Rápida da Reabilitação Urbana, as alterações do interior dos imóveis encontram-se expressamente excluídas do âmbito de apreciação dos pedidos de licenciamento.
O facilitismo atualmente reinante no licenciamento de obras de reabilitação de edifícios pode revelar-se mais gravoso, do ponto de vista da segurança de pessoas e bens, do que as irregularidades nos atestados médicos. A exigência de qualificação dos engenheiros que assinam os termos de responsabilidade é muito menor do que a dos médicos: a partir dos anos 1980 houve uma rápida proliferação de cursos que debitaram para o mercado de trabalho grandes quantidades de engenheiros e engenheiros técnicos vocacionados para a construção de edifícios, com formação profissional de qualidade muito diversa e frequentemente duvidosa; a partir de 2015, a Ordem dos Engenheiros passou a admitir como membros efetivos os licenciados pós-Bolonha, com apenas três anos de estudos superiores. À face da Lei, todos estes profissionais, desde que estejam inscritos numa das duas ordens de engenheiros existentes e possuam um módico de experiência, são considerados competentes para assinar termos de responsabilidade. Finalmente, convém lembrar que, em muitos casos, o técnico solicitado a assinar os termos de responsabilidade está sujeito a vínculos laborais com a empresa projetista ou empreiteira que tem a obra a cargo, o que cria um constrangimento que pode afetar a credibilidade das declarações constantes desses documentos.
Em resultado das disposições legais e regulamentares vigentes estima-se que sejam passados anualmente, por engenheiros ou engenheiros técnicos, muitas dezenas de milhares de termos de responsabilidade.
A existência, mesmo que por simples incúria, de imprecisões ou inverdades nas declarações constantes dos termos de responsabilidade assinados pelos técnicos envolvidos em obras de reabilitação pode ocultar deficiências graves e pôr em risco pessoas e bens, em particular nas regiões sísmicas do País, como é o caso de Lisboa e do Algarve. É tempo das duas Ordens dos Engenheiros adotarem uma postura proactiva como fez a Ordem dos Médicos, aprofundarem esta questão e promoverem auditorias e ações preventivas, em colaboração com as principais autarquias e os órgãos da administração central envolvidos.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico