“Só vamos sair de Moçambique quando terminar a reconstrução do hospital”

Os donativos dos portugueses para apoio a Moçambique ainda estão “aquém das necessidades”. É preciso continuar a fazer donativos, apela Francisco George, um mês depois do ciclone Idai.

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Rui Gaudêncio

Francisco George, o antigo director-geral da Saúde que era quase sozinho uma instituição, está agora à frente da Cruz Vermelha Portuguesa. Em entrevista ao PÚBLICO e à Renascença, que pode ouvir esta quinta-feira às 12h, Francisco George fala do que o levou a avançar para a primeira linha do apoio às vítimas do ciclone Idai, em Moçambique.

A disponibilidade da Cruz Vermelha na operação de Moçambique acabou até por sobrepor-se a outras plataformas que podiam congregar esse apoio. Por que é que teve esse impulso? Achou que outras opções não tinham garantias necessárias? Não podemos ignorar que tínhamos um clima de certa hostilidade em relação à solidariedade. Este problema que surgiu a seguir aos incêndios de 2017, de Pedrógão, veio criar uma nuvem escura em relação à solidariedade e foi por isso que a seguir em Monchique não houve um movimento solidário, de angariação de fundos para apoiar a reconstrução. Estávamos neste clima e eu juntamente com os meus colegas de direcção, no dia 15 de Março, quando acontece o ciclone, achámos que devíamos avançar para apoiar as populações.

Foi uma oportunidade de vencer uma desconfiança que existia? 

De certa forma foi. Era preciso mostrar que não havia razões para a desconfiança. Decidimos também criar uma plataforma alargada onde todos podiam participar, os Médicos do Mundo juntaram-se. Foi um processo conduzido sem erros. A grande questão é que não se repetiram os erros passados.

Quais erros? 

Em Pedrógão houve erros. Esta questão de aceitar donativos em espécie é um erro. Separar roupa usada envolve milhares de horas de trabalho. 

É mais fácil dar roupa do que um cheque. 

Aí é que está. É que é muito mais difícil organizar o destino da roupa, sobretudo se for usada, do que um cheque. Essa é uma das lições. Deve-se recolher apoios financeiros e em espécie aquilo que fosse realmente útil: alimentação, sobretudo enlatados, com prazo de validade alargado e abertura fácil e também produtos ligados à potabilidade da água que era preciso assegurar. E, naturalmente, medicamentos. Foi preciso tomar uma decisão para criar infra-estruturas como um hospital de campanha e uma maternidade de campanha. 

Quais foram as maiores dificuldades que encontraram? Continuam pessoas da Cruz Vermelha no terreno. 

Temos o hospital de campanha num dos bairros da Beira, com 24 elementos da Cruz Vermelha e dos Médicos do Mundo. E uma maternidade que está com grande actividade, uma vez que há ali um problema de saúde materno-infantil. Não foi por acaso que o segundo voo foi unicamente destinado ao transporte, para além da maternidade, de artigos para mães e crianças. Um exemplo: o kit de parto, fundamental para assegurar a saúde da mãe e da criança. Foi uma tonelada e meia só com kits de parto. O acampamento da Cruz Vermelha Portuguesa vai continuar na Beira até à reconstrução dos edifícios, que foram parcialmente destruídos pelo ciclone, da maternidade do bairro e do centro de saúde, do ambulatório, da farmácia. São edifícios que, através dos donativos do povo português, vão ser reconstruídos.  

A Maternidade Alfredo da Costa recusou enviar pessoal seu. 

A Maternidade Alfredo da Costa, como instituição, não foi contactada. Foram contactados médicos e enfermeiros que trabalham na Maternidade Alfredo da Costa. Não endereçámos convites a instituições. Foi organizada uma bolsa de voluntários que está em fase de preparação para os turnos que se seguem. Esta é outra das lições que aprendemos com o passado. Nós não entrámos na fase de emergência. A fase de emergência foi sobretudo dos bombeiros e dos militares. Nós decidimos ficar até à reconstrução.

Quanto tempo vão ficar? 

O tempo que for preciso. Os donativos do povo português estão muito para além daquilo que tínhamos esperado, mas ainda aquém das necessidades. É preciso continuar com a angariação de fundos. Há muitas despesas. Temos que manter no território 25 enfermeiros, médicos, psicólogos, para além dos arquitectos, engenheiros e homens da construção civil. Só vamos sair da Beira quando terminar a reconstrução da maternidade que foi destruída e das edificações que foram muito abaladas. Mas há aqui um contra-relógio: a visita do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa à Beira que está - não anunciada - mas prevista para o Outono. Em função da visita, nós gostaríamos que o Presidente português fosse inaugurar, em conjunto com as autoridades de Moçambique, o novo hospital que é possível construir com os donativos dos portugueses. Vamos deixar uma memória em pedra. Na placa, lá estará escrito que o povo português, por subscrição pública voluntária, possibilitou a reconstrução daquele edifício. Actualmente, já ultrapassámos a barreira dos 2 milhões, aproximamo-nos de 2 milhões e 300 mil. 

Voltemos aos erros de Pedrógão. 

Nós aprendemos muito com erros. Nenhum erro se repete, isso seria altamente condenável e não seria esta equipa da Cruz Vermelha que iria insistir em erros. As lições foram muitas. Pela primeira vez introduzimos um auditor externo independente, que é uma personalidade com reconhecida competência na área da revisão de contas. O professor José Rodrigues foi bastonário da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas e é uma personalidade acima de qualquer suspeita e, com estatuto de voluntário, verifica as contas todos os dias.

Mas a página da transparência da Cruz Vermelha Portuguesa não só inscreve diariamente as receitas como também as despesas. Quem quiser ver a evolução dos montantes pode lá ir. Sobre os erros importa também dizer que a Câmara de Pedrógão não é a Câmara de Lisboa...

Não estava preparada. 

Nem ela nem nenhuma outra. Essa é outra lição, mas para o Estado. Os planos de contingência não podem ser baseados em instituições de tipo local, seja junta seja câmara municipal, que tem um técnico que aprova por ano, em média, um projecto...

Quando chegou à Cruz Vermelha disse que a instituição tinha sido muito bem gerida, numa declaração que fez à Lusa na altura. A verdade é que neste momento existe uma investigação em relação à gestão da Cruz Vermelha.

Eu disse que tinha sido muito bem gerida mas não era no sentido das administrações anteriores. Era em relação à equipa que entrou em 2017. Quando fiz 70 anos de idade tive obrigatoriamente de sair da administração pública - e devo dizer que concordo com essa lei porque é preciso renovar. Cinco dias depois, tiveram lugar as eleições para a Cruz Vermelha e eu costumo dizer que tive cinco dias de reforma. E então cinco dias depois fui eleito por unanimidade. A partir daí houve um compromisso de iniciar um processo de transparência, criou-se uma página para esse fim.

Mas isso decorreu da percepção de que havia problemas na instituição? Não conhecia o que se passava na instituição. Mas a minha cultura é da transparência, da honestidade, da honra, da palavra que uma vez dada tem que ser inteiramente observada. 

Mas está a decorrer uma investigação do Ministério Público. 

Mas é à administração passada. Até posso dizer que já fui chamado à Polícia Judiciária para esse fim. Se bem que as questões que foram divulgadas não eram inteiramente correctas e na sua essência tinham um grande engano, publicitado num relatório que não existiu como tal. Os relatórios da Inspecção-Geral das Finanças, para serem relatórios definitivos, têm que ter contraditório e o relatório que foi publicitado não teve contraditório e tinha erros mesmo grosseiros. Esses dados que foram divulgados temos que reconhecer que prejudicam o ambiente de confiança relativamente às associações humanitárias. 

Prejudicaram a imagem da Cruz Vermelha? 

Claro que não abonaram, prejudicam sempre. Ninguém gosta que a Caixa Geral de Depósitos esteja sob fogo permanente. Às duas por três os portugueses não confiam. Vamos trocar a Cruz Vermelha Portuguesa por Caixa Geral de Depósitos, que foi administrada por pessoas sem critérios de rigor e que terão emprestado sem garantias montantes muito elevados. Mas os portugueses perceberam que foi uma administração e que não é a Caixa como instituição.

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