Rinoceronte salva rapaz depois de um furacão
David Machado criou uma história que decerto vai conquistar novos leitores. Em Não Te Afastes, há aventura, emoção, estranheza, superação. Os jovens que já gostam de ler terão mais um motivo para não desistir da literatura.
Tomás está convencido de que é o responsável por tudo o que de mal acontece às pessoas de quem se aproxima. Esta certeza instalou-se depois da morte do pai, que caiu do cavalo quando o procurava à noite pelos campos em redor de sua casa.
O rapaz decidiu então afastar-se dos que ama. Só assim poderia proteger a mãe e os amigos do que a sua presença pudesse vir a provocar. Encheu a mochila com o que lhe pareceu essencial e desandou.
Depois de passar o dia a entrar e a sair de camionetas em direcção à casa de um tio, que não estava nem chegou, e de dormir num degrau, descobriu: “Eu não sabia que estar sozinho doía tanto.”
Não era igual a estar sozinho de livre vontade quando se sentava perto do rio no regresso da escola. Isso “era bom”, apercebeu-se agora. “Estar sozinho na cidade é outra coisa: é como cair num precipício e nunca chegar a bater no chão lá em baixo. Todas as ruas têm gente, há milhares de pessoas à minha volta e ninguém olha para mim, ninguém fala comigo, como se eu não existisse.”
Para tornar tudo mais difícil, vinha um furacão a caminho da cidade.
Tomás há-de ficar sem mochila, sem bateria no telemóvel e sem esperança. Será perseguido, ameaçado, levado pelo vento e pelas águas que o furacão descontrolou.
Juntos na solidão e no medo
Com as dores e inquietação que sofreu, o rapaz chegou a julgar-se morto. Mas não. Sobreviveu. Pelo caminho, encontrou alguém tão vulnerável e assustado como ele: uma cria de rinoceronte roubada à mãe e ao jardim zoológico.
Juntos, na solidão e no medo, ganham uma nova coragem. Como só acontece entre amigos de verdade. Acabarão por ser os heróis do salvamento de uma menina e, mais adiante, os responsáveis por ditar o destino de quem lhes queria fazer mal.
Neste percurso sinuoso e doloroso, o rapaz percebeu que a sua ideia de ser o responsável pelo mal à sua volta não fazia sentido. Aprendeu ainda que “todos os acontecimentos têm consequências boas ou más”.
Foi o pai da menina que ambos (Tomás e o rinoceronte) salvaram que o pôs a reflectir: “Pensa, por exemplo, no momento em que fugiste de casa. Para a tua mãe isso não foi bom, tenho a certeza. Mas se não o tivesses feito, nunca terias chegado aqui com aquele animal para salvar a minha filha.”
E assim, pela primeira vez desde que o pai morrera, o menino foi capaz de olhar para as coisas de uma forma diferente, mais nítida. “Como um daltónico que, de repente, consegue ver as cores como elas são na realidade.”
Leitores garantidos
Se a amizade destes protagonistas é altamente improvável, a capacidade de David Machado conquistar novos leitores com este livro não. Não Te Afastes tem tudo. Na história, aventura, emoção, estranheza, superação. Na escrita, clareza, ritmo, contenção, sentido literário e poético.
O autor vai alternando a descrição dos acontecimentos com os pensamentos de Tomás. Estes últimos são registados em itálico e em páginas com o desenho de uma casa no topo (do ilustrador Alex Gozblau).
Para o leitor mais inexperiente, esta divisão facilita o entendimento e ajuda ao seu envolvimento. É o que se quer de um livro.
Uma bela porta de entrada para a literatura, para os jovens mais renitentes, e um convite feliz à permanência dos já conquistados.
Não Te Afastes (a história de uma amizade bastante improvável)
Texto: David Machado
Capa e ilustração das vinhetas dos capítulos: Alex Gozblau
Revisão: Madalena Escourido
Edição: Caminho
168 págs., 14,40€
‘Tás a ler? é uma rubrica (quase sempre) sobre livros para adolescentes e jovens adultos. Daremos preferência a autores portugueses. Porque sim.