Os inesquecíveis amnésicos

Tancos e memória selectiva: “Não me lembro se mandei ao senhor ministro. Ele diz que não viu, eu confio no senhor ministro.”

A vida do jovem norte-americano Henry Molaison tinha entrado num beco sem saída. Aos 27 anos, era incapaz de trabalhar ou de sair à noite com os seus amigos por causa das crises de epilepsia que o afectavam desde criança, e que nos últimos tempos tinham piorado tanto que o levaram a aceitar uma solução radical: remover uma zona do cérebro, uma parte do lobo temporal, incluindo partes do hipocampo e da amígdala.

Estávamos em 1953, e dizer que a operação proposta pelo neurocirurgião William Scoville era arriscada, é o mesmo que chamar politicamente incorrecto a um racista – percebe-se o que queremos dizer, mas não conseguimos transmitir a verdadeira dimensão da besta que está à nossa frente.

Ora, acontece que o Henry Molaison que entrou no bloco operatório do Hospital Hartford, no estado do Connecticut, morreu quando o doutor Scoville lhe fez dois pequenos furos no crânio, por cima dos olhos, para retirar o que estaria a mais com a ajuda de bisturis e tubos de sucção. O novo Molaison, que antes se lembrava de tudo como se fosse hoje, não se lembrava de nada que tivesse acontecido na década passada — nem na manhã desse dia, nem há uma hora, nem de nada que acabou de acontecer mesmo agora.

Nos 55 anos seguintes, a severa amnésia de Henry Molaison, aliada à sua disponibilidade para ajudar a ciência, foi um autêntico parque de diversões para os neurocientistas. Foi naquele cérebro, incapaz de guardar memórias recentes, que as neurociências modernas encontraram as chaves para muitos dos mistérios sobre a forma como as funções da memória estão organizadas no cérebro humano.

Molaison morreu no dia 2 de Dezembro de 2008, aos 82 anos, num lar no estado onde nasceu. Num título tão feliz como previsível, o jornal New York Times chamou-lhe “o inesquecível amnésico”, num obituário que inclui uma declaração da médica que começou a estudar o cérebro de Molaison em 1953, Brenda Milner: “Ele era um homem muito amável, tinha muita paciência, e estava sempre disposto a fazer os testes que eu lhe dava. E, no entanto, sempre que chegava ao pé dele, era como se nunca nos tivéssemos conhecido.”

Durante toda a vida, Molaison viveu sempre acompanhado — primeiro pelos pais, depois com outros familiares, e por fim num lar. As memórias que tinha dos seus primeiros 27 anos de vida ajudavam-no a cumprir tarefas simples, como cozinhar ou fazer a cama, e acabou por reter a ideia, de forma vaga, de que estava a participar num trabalho importante — embora não conseguisse recordar pormenores, nem sobre os investigadores, nem sobre as investigações.

Mais de seis décadas depois da operação que mudou para sempre a vida de Henry Molaison, e dez anos depois da sua morte, o mundo da neurociência não encontrou um substituto à altura para aprofundar ainda mais os estudos sobre a memória. Mas há uma área em particular que pode vir a beneficiar imenso com o estudo de alguns pacientes vivos, e em que Portugal está na liderança: a memória selectiva.

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Kurt Hutton/Picture Post/Hulton Archive/Getty Images

Esta semana, na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as consequências e responsabilidades políticas do furto do material militar ocorrido em Tancos, um dos inquiridos recordou uma reunião que teve no dia 20 de Outubro de 2017 com outras duas pessoas sobre o assunto, que via como “muito importante”.

Recordou também que uma das pessoas estava vestida de forma “desportiva”, com ténis e tudo, e que a outra “vinha mais formal”. E que nem uma nem outra quiseram beber café.

Lembra-se de que foram postos em cima de uma mesa dois documentos, e que um deles não tinha data nem assinatura — uns dizem que contava a história de que a descoberta das armas furtadas em Tancos foi uma encenação, outros dizem que não dizia nada disso, e outros ainda dizem que não dizia isso com todas as letras.

Mas houve algo que chamou a atenção naquela reunião em que participaram duas pessoas, uma vestida de forma “desportiva”, com ténis e tudo, e outra que “vinha mais formal”, embora nenhuma tenha dado sinais de gostar de café. Aqueles dois documentos — os que foram postos em cima de uma mesa — deviam ser lidos e destruídos “de seguida”, até porque as pessoas que os entregaram pareciam estar “apavoradas”.

Agora, só faltava que a memória vívida daquele dia 20 de Outubro de 2017 respondesse a mais uma questão: aqueles documentos — os que eram tão sensíveis que deviam ser destruídos “de seguida” — foram enviados ao então ministro da Defesa, José Alberto Azeredo Lopes, para que ele pudesse decidir se diziam que a descoberta das armas furtadas em Tancos foi uma encenação, se não diziam nada disso, ou se não diziam isso com todas as letras?

E é a resposta a essa pergunta que pode interessar aos estudiosos da memória, em particular da memória selectiva: “Não me lembro se mandei ao senhor ministro. Ele diz que não viu, eu confio no senhor ministro.”

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