O “virar de página” da austeridade não foi “dramático”
O eleitorado moderado do centro percebe que pior do que alguma austeridade como a que Centeno aplicou é não haver austeridade nenhuma.
O Governo de António Costa não fez uma mudança “dramática” nas políticas de austeridade herdadas de Pedro Passos Coelho. A declaração, politicamente relevante, foi feita esta quarta-feira pelo ministro das Finanças, Mário Centeno, ao Financial Times e vinca uma faceta do discurso político do Governo diferente do que temos ouvido até agora.
Mesmo que a semântica do “dramatismo” seja susceptível de divergência, é forçoso concluir uma mudança “dramática” (ou “drástica”) no culto da austeridade é algo diferente do “virar a página da austeridade” que o Governo glosou a eito na última legislatura.
O que leva Centeno a usar uma abordagem da austeridade muito mais consentânea com a realidade da sua política agora, quando estamos a poucos meses de eleições? Uma resposta: o eleitorado moderado do centro percebe que pior do que alguma austeridade como a que Centeno aplicou é não haver austeridade nenhuma.
Chegámos assim a um momento em que, pressionado pelas reivindicações dos sindicatos e dos partidos da esquerda, o Governo decide abandonar o discurso para as expectativas para se centrar no discurso sobre a realidade.
É verdade que muitas das medidas de austeridade adoptadas nos dias sombrios da troika foram revertidas, que houve uma devolução de impostos, aumento de pensões e do salário mínimo. É também verdade que a combinação dessas políticas com um discurso de mudança contribuiu para a melhoria da confiança dos consumidores e dos agentes económicos.
É ainda verdade que, na sua essência, o Governo de António Costa confrontou o diktat de Bruxelas, dos mercados ou dos defensores à direita de uma travagem nas políticas públicas. Mas, só os mais convictos militantes do PS e da “geringonça” puderam alguma vez acreditar que a austeridade tinha virado a página – ou seja, acabado.
Se Centeno pôde começar a dizer recentemente o que geraria uma tempestade política há dois ou três anos é porque quer ele, quer o primeiro-ministro sabem e sentem que esse discurso é eficaz junto dos cidadãos. O eleitorado que reconhece o controlo do défice como a maior conquista do Governo e sabe que deixar escapar essa conquista para satisfazer as reivindicações sindicais seria um desastre junto do eleitorado flutuante que decide as eleições.
Se há três anos proclamar o fim da austeridade era um trunfo para segurar o país e cimentar a geringonça, hoje dizer que, afinal esse fim não foi assim tão “dramático” é um trunfo para evitar a ideia que o regresso à irresponsabilidade fiscal está aí ao virar da esquina.