A Europa na encruzilhada
A Europa hoje merece bem o verso de T.S. Elliot: “O género humano não pode suportar muita realidade.”
Quando olhamos hoje para a ordem ou desordem internacional verificamos que estamos a construir ao mesmo tempo duas civilizações: uma física e outra digital. Isto nunca aconteceu antes na história. Cada pessoa tem ou vai ter uma dupla identidade – física e digital – e os países vão pelo mesmo caminho. Cada país vai ter uma identidade dupla e uma política dupla. E estas políticas podem não coincidir: no plano físico, um país dá garantias de não querer atacar outro, enquanto no espaço digital o faz ferozmente. No meio desta complexidade crescente temos a União Europeia que hoje é um império de contabilistas, fazedores de regras e regulamentos mas que não é uma entidade geopolítica nem pensa estrategicamente, o que a deixa nas mãos do acaso e do banditismo tecnológico. O próprio facto de estarmos a construir uma civilização digital onde as grandes companhias tecnológicas concentram um poder imenso implica que a geografia tradicional do poder está longe de estar configurada ao Estado-nação e cria desafios novos sobretudo às democracias. Quando caminhamos para as eleições europeias de Maio olhamos à volta e parece que somos todos nefelibatas, andamos nas nuvens a discutir o sexo dos anjos e fugimos a encarar a realidade. A Europa hoje merece bem o verso de T.S. Elliot: “O género humano não pode suportar muita realidade.”
Desde 2008, com a crise económica e financeira, a Rússia começou a explorar as fraquezas das democracias europeias, exportou os seus oligarcas, criou uma teia de corrupção nos países ocidentais e em particular no Reino Unido, assassinou em território europeu opositores e hoje usa o poder disruptivo da tecnologia digital e a propagação de notícias falsas nas redes sociais para interferir em eleições e apoiar os movimentos de extrema-direita e extrema-esquerda que contestam o projeto europeu. Tem como objetivo minar a própria ideia de União Europeia e a legitimidade dos processos democráticos. É por isso que as eleições de Maio são das mais decisivas da história da Europa. Se, no fim, tivermos um Parlamento Europeu com uma representação significativa das forças nacionalistas extremistas, xenófobas e antieuropeias, então a obra-prima dos inimigos da democracia estará completa: a introdução do cavalo de Tróia no próprio Parlamento Europeu, para de dentro destruírem a União.
E isto é potenciado pela deriva antidemocrática que hoje assola a Europa, com a promoção descarada de um outro modelo político que perverte a democracia – a “democracia iliberal” – feita pelo Grupo de Visegrado, formado pela Polónia, Hungria, República Checa e Eslováquia, com a conivência de muitos. Este grupo cresceu em força com a crise dos refugiados, com o aumento dos fluxos migratórios, com a demonização do outro e com o apoio aberto da Administração Trump que o usa para dividir e enfraquecer a Europa. E é dentro deste grupo que começa a germinar a ideia de que a integração europeia não é a coisa certa a fazer e que há outras alternativas que mais depressa asseguram segurança e estabilidade, nomeadamente com modelos nacionalistas mais autoritários como o da Rússia, China e Turquia. É uma ilusão que a Europa pode pagar caro. O que torna tudo ainda mais inquietante é que os dois países que lideraram a globalização – EUA e Inglaterra – e foram os defensores da ordem liberal, do primado da lei, da democracia, do comércio livre e do mercado, estão a abandonar essa liderança, a virarem-se para dentro e a tentar reinventar-se no quadro da Nação.
O século XXI vai depender do resultado desta batalha. O conceito de Nação é indissociável da história da Europa. Mas, na sequência das duas guerras mundiais que devastaram o continente, o projeto de união e de cooperação nasceu para instalar uma paz duradoura e reinventar a Europa. Infelizmente esse projeto está hoje sob ataque de todos os quadrantes. E para citar outro poeta, William Yeats, podemos dizer que nesta batalha “aos melhores falta a convicção enquanto os piores estão animados de uma intensidade apaixonada”. Hoje faltam líderes capazes de defender o projeto europeu enquanto os Salvinis, as Le Pens e os Steve Bannons têm uma energia inesgotável. O pensador francês Emmanuel Todd diz que a Europa já não tem classes dirigentes mas sim classes dirigidas. Os líderes estão aprisionados pelo “curto-prazismo” e governam pela sondagem, pela opinião, pelo ar do tempo, pelo “politicamente correto”.
E o que é paradoxal nesta história é que o regresso da Europa à Nação começou no auge da vitória das forças democráticas em 1989 e no fim da Guerra Fria, exatamente com a reunificação da Alemanha. Pouco tempo depois outra grande nação europeia – a Rússia – dá sinais de renascimento do seu projeto nacional e imperial com a invasão da Chechénia em 1993 e a reafirmação da sua influência em todo o antigo espaço soviético. Mas o mais inesperado vem com a eleição de Trump em 2016 e a sua política de recentragem na nação e com o “Brexit” alguns meses depois. Se se consumar esta tendência, com o regresso da Europa à Nação, o futuro será muito diferente com o abrandamento da globalização, o declínio do comércio, a estatização da economia e o aumento da probabilidade de guerra. E quem vai dar a resposta decisiva é a França.
Existe uma espécie de regra escondida na história da Europa: o que a Inglaterra faz, a França faz a seguir. Foi assim com a “Revolução Gloriosa” de 1688 em Inglaterra que estabeleceu a monarquia parlamentar e depois a “Revolução Francesa” de 1789. Em contextos diferentes, com abordagens diferentes, mas ambas marcando o futuro do continente e do mundo. O que vai acontecer se a regra escondida da história europeia se repetir? Uma coisa é certa: o “Brexit” é um golpe no projeto europeu. E estamos a assistir a esta coisa vergonhosa da parte do europeísmo anglófobo que é ridicularizar e diminuir a Inglaterra. É triste, embora o “Brexit” seja uma fantasia geopolítica e a classe política inglesa não ajude. Mas convém não esquecer que foi no Reino Unido que se inventou a democracia representativa moderna, a economia de mercado, o primado do direito e da lei, a revolução industrial. E para os que estão muito satisfeitos pergunto: como vai funcionar a UE sem o Reino Unido? Quem vai contrabalançar o peso da Alemanha com uma França fragilizada? Quem se vai opor ao dirigismo e estatismo francês que já está de volta com novas politicas protecionistas e a defesa de campeões nacionais?
A Europa não precisa de protecionismo face à China, precisa de políticas económicas inteligentes que promovam o crescimento sustentável e de políticas científicas e de educação que favoreçam a inovação tecnológica e a reinvenção das cadeias de produção e de abastecimento. Uma UE sem o Reino Unido significa hoje pura e simplesmente o primado absoluto da germanosfera, a ditadura económica e financeira de Berlim, o fim das políticas de consenso que permitiam à Europa respirar. O poeta alemão Goethe escreveu na sua Ifigénia na Táurida: “Viver na frustração é ter morrido prematuramente.” O projeto europeu vive hoje na frustração e a Europa tem que decidir se quer viver ou tornar-se irrelevante.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico