Agnès Varda, realidade e utopia

Morreu Agnès Varda. Baixinha, de energia inesgotável, olhos vivos e marotos num rosto de serenidade e paz, presença feminina com grande à vontade num mundo ainda incrivelmente masculino, abordando a ficção e o documentário sem forçar a distinção, permanecendo igual e sempre surpreendendo em filmes europeus ou no outro lado do Atlântico, dir-se-ia pertencer àquela galeria de imortais que a magia do cinema parece regularmente encontrar.

Em mais de 50 filmes, curtos ou longos, durante sessenta e tal anos praticamente sem hiatos, ainda que em formatos e condições de visibilidade bem diversos, ela teve uma importância bem maior do que habitualmente se lhe atribui.

E, no entanto, bastaria para o deixar perceber um filme curto, de menos de meia hora, estreado em sala em França há quase 60 anos (14 de Junho de 1959) como complemento de Hiroshima, meu amor, primeira e surpreendente longa-metragem de Alan Resnais, que, aliás, fizera a montagem da sua anterior longa-metragem de estreia, La Pointe- Courte, e para mais uma encomenda do Office National du Tourisme. Chama-se Du côté de la côte (em edição DVD em França, no conjunto Varda Tous Courts, Arte Éditions, 2017) e é aparentemente apenas um documentário de promoção da Riviera Francesa/Côte d’Azur.

 Mas na realidade é muito mais do que isso.

Aquando da Porto 2001, Capital Europeia da Cultura, Jorge Campos e Dario Oliveira organizaram uma monumental Odisseia nas imagens onde o filme de Varda foi incluído. E quando publicaram o terceiro volume do Olhar de Ulisses, intitulado A Utopia do Real, com textos sobre os filmes exibidos, pediram-me que escrevesse sobre Du coté de la côte.

Eu conhecia muito bem o filme pois nos distantes anos 70 no início da minha carreira de médico no serviço público e no treino como psiquiatra no Hospital de São João, já com alguma experiência como cineclubista e crítico de cinema, propus-me utilizar alguns filmes numa actividade socio-terapêutica de discussão em grupo com portadores de doenças mentais moderadas e graves que frequentavam o hospital de dia, estrutura de tratamento complementar da consulta externa, nesse tempo única pois só no final da década abriu naquele hospital geral uma unidade de camas de internamento psiquiátrico completo.

Os filmes, ainda em película no formato de 16 mm, mais manejável que os 35 mm ou até 70mm das salas comerciais de então, eram cedidos por algumas embaixadas estrangeiras, entre elas a francesa em cujo catálogo constava o filme de Agnés Varda.

Na realidade a colaboração dos serviços culturais das embaixadas de França, Reino Unido, Holanda e Canadá permitia que documentários notáveis como La Seine a rencontré Paris (1957) de Joris Ivens, Night mail (1935) de Harry Watt e Basil Wright ou Terminus de John Schlesinger (1961), Glass (1957) de Bert Haanstra, ou de imagem animada como Neighbours de Norman McLaren, fossem vistos e comentados em grupo, numa espécie de cineclube terapêutico, por gente por vezes sem grande hábito de frequência das salas de cinema e com experiências sociais e culturais diferentes que frequentemente as dificuldades emocionais e comportamentais aproximavam.

A qualidade poética dos filmes e o olhar sobre personagens e situações com que se podiam identificar, permitiam trocas comunicacionais muitas vezes verdadeiramente surpreendentes e que auxiliavam a terapia que se procurava fazer.

Lembro-me de como um paciente, trabalhador agrícola já de mais idade que a maior parte do grupo, em recuperação de um alcoolismo crónico, homem isolado e, como se costuma dizer, de poucas falas, se entusiasmou a falar do “entrudo” na sua terra comentando as sequências seguramente muito diferentes do carnaval de Nice que Varda mostra no filme.

Nada disso é totalmente exterior a características do próprio cinema de Agnès Varda e da atenção da sua câmara e da perícia na sua composição dos planos ou na montagem.

Sempre me pareceu que o diálogo entre duas vozes, uma feminina e outra masculina, que pontua o filme com uma musicalidade que dispensa no seu encantamento até o profundo conhecimento da língua, era essencial ao cinema de Varda e viria a legitimar uma leitura dialógica, bakhtiniana, extensiva a muito do cinema mesmo bastante posterior de Alan Resnais, ou de Marguerite Duras, cujo texto servia de base a Hiroshima meu amor (1959) e que faria uma carreira como cineasta em filmes neste particular especialmente relevantes, como India song (1975) ou Le camion (1977), com a magnífica leitura do guião, da realizadora com o “motorista” Gerard Depardieu.

Por isso recuperei para título desse meu texto de 2001 o de um outro filme de Agnés Varda, L’une chante, l’autre pas (1977)

Mas no pequeno filme de Varda está também inscrito o uso de diferentes signos visuais, em aproximações e contradições numa espécie de ironia face ao que as palavras faladas podem dizer e ao seu potencial de falsificação, que um cineasta como Jean-Luc Godard virá em toda a sua filmografia a desenvolver, com os recursos do digital e do 3D.

Aliás Godard escreveu logo em Fevereiro de 1959 (Cahiers du Cinéma, nº 92), numa crónica sobre a exibição do filme em festivais e ainda antes da estreia em sala, uma frase tão entusiástica como “nunca esquecerei a maravilhosa panorâmica de ida e volta que segue um galho de árvore na areia para acabar sobre as sapatilhas vermelha e azul de Adão e Eva”.

Há uma história (ou várias?) que se desvenda no mundo dos signos que Varda vai convocando, ou até confrontando. Como no diálogo de capas dos livros que Godard posteriormente inventará em Uma mulher é uma mulher (1961), e de certa maneira prolonga em todo os abundantes intertítulos na sua posterior mais política filmografia, Du coté de la côte abre com placas e tabuletas de ruas e de lojas a indicar vestígios de uma significativa influência inglesa, e logo depois os nomes da literatura, da pintura, do pensamento, e por aí a morte e os cemitérios, e o esqueleto de um Cro-magnon que um cão parece querer importunar, para logo contrapor o sol e o prazer, a B.B. — Saint Tropez — e Sofia Loren — Cannes.

E os travellings à direita e à esquerda parecem procurar uma surpresa, uma espécie de efeito cómico, que tem dois precedentes significativos no anterior cinema francês: Jean Vigo que filmara logo em 1930 À propos de Nice; e Jacques Tati que em ambiente de veraneio filma também As férias do Senhor Hulot (1953).

Repare-se como os gags visuais, e mesmo de escala, do cinema até posterior de Tati, são visitados por Agnès Varda nos corpos deitados na areia que filma e que se prolongam num cão ou num bebé.

E subitamente, no excelente ritmo do filme, Varda descobre o eden, também nos letreiros e nas placas, e de imediato na diversão do carnaval, de gigantones e cabeçudos, e uma alegria que mistura as cores vivas já antes mostradas, o amarelo e o azul, a praia e o mar, e enfim todas as cores. E logo vem a noite e o fogo e o fim das férias (e o próximo ano?).

O Eden existe, afirma Agnès Varda. Ou é-nos vedado? Suprema ironia de uma promoção turística ou o encanto (real? utópico?) da vida que a certeza da morte não abala e Agnés Varda continuamente celebrou até ao último minuto? Até aos portões que se fecham no final do filme. Vamos lá voltar ou talvez não?

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