“Brexit” sob ventos de mudança
O futuro da democracia e da União Europeia reside na capacidade de os seus dirigentes estarem atentos aos ventos de mudança, de aceitarem que a Europa não é apenas um espaço para as velhas correntes da democracia-cristã e da social-democracia.
Se o “Brexit” foi a primeira grande vitória dos nacionais-populistas, as dificuldades para levarem a cabo o seu “Brexit”, apesar das concessões de Theresa May ao populista Boris Johnson, são um sinal de mudança.
A decisão de Theresa May de procurar um consenso com o líder dos trabalhistas é sinal de que começa a compreender o perigo de ficar refém dos nacionais-populistas.
Depois de anos de recessão democrática, surgem indícios de que emerge não apenas uma contracorrente progressista e social, que recusa o nacional-populismo de direita, mas também o nacionalismo da esquerda conservadora. São liberais nos valores e sociais nas políticas económicas, intransigentes na defesa dos direitos humanos, do ambiente e da hospitalidade. São uma força indispensável para a derrota dos Trumps, Jonhsons e Bolsonaros deste mundo.
O recurso às referências dos anos 90, à agenda de Tony Blair não é boa receita para compreender o que se está a passar, o que talvez explique a dificuldade em que a Europa vive para perceber o movimento anti-"Brexit”. Para alguns, o Labour de Corbyn é a velha política de uma esquerda desconectada da realidade e, por isso, ainda apostam em Theresa May, apesar das suas concessões à direita quase extrema do seu partido. Existe, em muitos, a convicção de que se um partido, nas suas políticas sociais, é claramente de esquerda, equivale necessariamente a ser anti-UE, o que significa aceitar, de forma implícita, o argumento dos nacionalistas da extrema-esquerda, para quem a União Europeia é um clube neoliberal, cujas regras impedem uma política de alternativa que conte com a oposição dos mercados.
Desconhecem, ou temem, as mudanças que tiveram lugar com a vitória de Corbyn, em 2015, apesar das ambiguidades sobre o “Brexit” do líder trabalhista, num partido em que 88% dos membros são favoráveis à permanência na União e 72% pretendem um novo referendo, de acordo com um estudo publicado pelo The Guardian.
Quem pôs e manteve Corbyn na liderança dos trabalhistas (por enquanto) foi um vasto movimento de jovens activistas sociais, defensores de uma “Nova Política”. Segundo Mary Kaldor, trabalhista e teórica da segurança humana, a “Nova Política” valoriza os processos de baixo para cima, alicerça-se na participação cidadã e “no conhecimento da realidade e na criatividade”. Os defensores da “Nova Política” são independentes de grupos de interesses, têm um discurso livre da retórica ideológica, fundamentado num conhecimento sólido da realidade social (muitas vezes feito da experiência vivida, porque nascidos em famílias pobres) e na defesa do conhecimento científico (nomeadamente o ambiental). Aparecem, pela sua preocupação com a desigualdade, como uma alternativa à extrema-direita junto dos eleitores que ela tem mobilizado.
Alexandria Ocasio-Cortez, nos Estados Unidos, ou Tabata Amaral, no Brasil, são exemplos desta “Nova Política”. Um momento a não perder é o de Tabata Amaral a deixar sem palavras Ricardo Vélez, Ministro de Educação de Bolsonaro. No caso britânico, encontramos os representantes da “Nova Política” no movimento anti-"Brexit": “Uma Europa diferente é possível”. Defendem que na União Europeia é possível construir uma alternativa às políticas neoliberais e reverter a recessão democrática. São críticos da esquerda nacionalista antieuropeia, que acusam de não distinguir os liberais pró-europeus, como Macron, da extrema-direita. Participaram na manifestação 1 milhão de cidadãos anti-"Brexit”, defendendo uma agenda socialista democrática, a liberdade de circulação, o “Green New Deal” e o objetivo de transformar e democratizar a Europa. Perturbam os analistas, porque não se revêem nos velhos consensos europeus, nem nas tendências dominantes das famílias da esquerda ou da direita pró-europeia.
Muitos líderes europeus, nomeadamente os populistas, têm lamentado os sucessivos chumbos do acordo negociado por Theresa May. Quando é que os líderes europeus vão começar a aceitar que a vitória da corrente progressista anti-"Brexit” seria uma grande oportunidade para relançar a União Europeia? Donald Tusk parece o mais consciente de que esta alternativa existe.
O futuro da democracia e da União Europeia reside na capacidade de os seus dirigentes estarem atentos aos ventos de mudança, de aceitarem que a Europa não é apenas um espaço para as velhas correntes da democracia-cristã e da social-democracia, mas um espaço que precisa de integrar, como actores de corpo inteiro, a nova geração de políticos progressistas e os movimentos de cidadãos, como o poderoso movimento feminista (veja-se a relevância das novas lideres políticas) e o movimento liceal ecológico.
A União Europeia tem de compreender que a aspiração democrática se mantém bem viva, pelo mundo todo, como o demonstram as manifestações pacíficas na Argélia ou as recentes derrotas eleitorais de Erdogan nas eleições locais na Turquia.
Já no final de março, a vitória nas presidenciais da Eslováquia de Suzana Caputova, ativista liberal, que defendia “humanismo, solidariedade e verdade”, vem mostrar que também à Europa de Leste chegam ventos da mudança.
Existem na Europa milhões de cidadãos desejosos de que os seus líderes sejam capazes de seguir o exemplo da primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, na sua recusa da intolerância e do racismo, nomeadamente da banalização da islamofobia.
É cedo para dizer que a recessão democrática terminou, porém podemos ver que a esperança democrática não desapareceu e que a visão de uma União Europeia fiel aos seus valores fundadores de democracia e justiça social também não. A reversão do “Brexit” daria à União um novo fôlego e traria para o debate político europeu milhares de activistas, não só entusiasticamente pró-europeus como também defensores da visão progressista da União que a pode salvar. Seria uma péssima notícia para os nacional-populistas e uma óptima notícia para os europeístas.
Fundador do Forum Demos