Democracia e legitimidade na União Europeia

Encontrar o equilíbrio e aperfeiçoar mecanismos de representação e de governo que permitam assegurar, simultaneamente, a legitimidade democrática e a eficácia das decisões será sempre um trabalho inacabado, mas sem o qual a UE corre o risco de se tornar uma ideia distante dos cidadãos.

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LUSA/MANUEL DE ALMEIDA

Pré-publicação – Eleições na União Europeia (ensaio da Fundação Francisco Manuel dos Santos)

A União Europeia (EU) vive num equilíbrio e numa tensão permanentes entre a sua esfera de actuação e a soberania dos Estados‑membros. A expansão da esfera de poderes da UE não deriva apenas da dinâmica da própria integração, mas também da necessidade de responder aos desafios que são apresentados aos Estados num quadro de crescente globalização dos problemas e de alterações na ordem internacional. Simultaneamente, os Estados e a UE também são desafiados pelo ressurgimento de diversos tipos de localismos, de nacionalismos e de populismos.

Este quadro levanta problemas de representatividade e de governação a UE e aos Estados‑membros. Neste contexto, há muito que se debate o denominado défice democrático das instituições europeias e as soluções mais adequadas para lhe dar resposta. Há quem considere que o caminho da devolução de poderes aos Estados e às instituições politicas nacionais, e quem considere que devem reforçar‑se os elos de legitimidade democrática supranacional.

Uma das respostas dadas ao longo do tempo para atenuar a percepção deste défice democrático foi o aumento da representatividade e dos poderes do Parlamento Europeu (PE). Desde 1979 que os seus membros são eleitos directamente, e em sucessivas alterações aos tratados o PE foi conquistando mais poderes. Por isso, foi‑se também acentuando a necessidade de um canal de representação directa dos cidadãos.

A par do processo legislativo, um dos domínios em que o PE ganhou poder de decisão foi na escolha do presidente da Comissão Europeia (CE). Em 2014, com a apresentação de candidatos dos partidos políticos europeus ao lugar de presidente da CE, houve uma clara intenção de associar essa escolha às eleições para o Parlamento Europeu. Reforçaria a legitimidade democrática das instituições europeias, e alguns viam este método como o embrião de um processo de escolha de um governo europeu.

A escolha de Jean‑Claude Juncker teve por base o facto de ter sido o candidato apresentado pelo partido político europeu com mais representantes no Parlamento Europeu, o que fez que a forma como o Conselho Europeu indicou o nome e o PE elegeu o presidente da Comissão Europeia tenha sido substancialmente diferente das anteriores. Mas, paradoxalmente, a natureza das eleições europeias não parece ter‑se alterado.

No essencial, os números agregados que reflectem uma participação eleitoral baixa, perda de votos dos partidos no governo e nos maiores partidos e votações mais expressivas dos partidos menos representados nos parlamentos nacionais mantém o padrão de eleições anteriores que consolidaram a ideia de que, no essencial, se trata de eleições nacionais de segunda ordem. Por outro lado, os inquéritos pós‑eleitorais demonstram que o impacto dos candidatos no comportamento eleitoral dos indivíduos foi diminuto.

A questão que subjaz é que os espaços políticos nacionais continuam a ser os espaços políticos de referência. Apesar da crescente importância das decisões tomadas na UE, não existe, na dimensão da relação entre eleitores e eleitos, um sistema político como os que existem em cada Estado‑membro.

Desde logo, porque os eleitores não votam em partidos políticos europeus, nem existe um espaço público europeu que permita uma relação suficiente forte de modo a estruturar um sistema partidário. Por conseguinte, a abstenção continuou a ser elevada quando comparada com as eleições nacionais, e os eleitores que votaram não o fizeram a pensar que estavam a escolher o presidente da CE.

Nos resultados, o facto mais relevante das europeias de 2014 foi o crescimento eleitoral e da representação no Parlamento Europeu de forças políticas eurocépticas, nalguns casos populistas e até anti-sistema. Os desenvolvimentos políticos que se têm visto em diversos países da UE, com destaque para o referendo do Brexit e as eleições em Itália, um dos seus membros fundadores, tem acentuado a ideia do reforço eleitoral desses partidos.

Por isso, não admira que todas as previsões apontem para que as eleições de 2019 conduzam a um PE ainda mais fragmentado. A grande proporcionalidade dos sistemas eleitorais utilizados nestas eleições é o terreno ideal para maior representação de novos partidos, para o crescimento de vozes críticas do sistema e populistas e, como tal, para a fragmentação partidária e parlamentar. Neste cenário, será mais difícil formar maiorias que permitam entendimentos alargados, desde logo, para a eleição do presidente da Comissão Europeia.

Assim, é natural que, face a um Parlamento Europeu mais fragmentado, possa acentuar‑se a vertente intergovernamental da UE, quer através do reforço do poder do Conselho Europeu, quer através do recurso a mecanismos e acordos entre os governos dos Estados‑membros para fazer face a problemas específicos.

Aliás, este “novo intergovernamentalismo”, como lhe chamam alguns autores, já foi protagonista na estruturação da União Económica e Monetária (UEM) e nos instrumentos de resposta a crise económica e financeira. Simultaneamente, algumas das instituições “não eleitas”, caso do Banco Central Europeu, continuarão a desempenhar um papel muito relevante no modelo de governação da UE.

Neste contexto, a UE está confrontada com a necessidade de compreender a sua natureza híbrida e plural, quer no carácter e nas relações entre as diversas instituições europeias, quer na relação com os diferentes Estados‑membros.

Terá sempre de haver um equilíbrio entre os representantes directamente eleitos para o PE e os governantes, representados no Conselho da União Europeia e no Conselho Europeu, e com a legitimidade democrática das eleições e dos parlamentos nacionais. Terá de prevalecer um “pluralismo razoável”, de que fala Philippe Schmitter, que encontre, a cada momento, equilíbrios que respeitem os mecanismos democráticos de escolha política dos seus Estados‑membros e que, simultaneamente, afirme o respeito inequívoco pelo Estado de direito e pela liberdade como valor inquebrantável da UE e dos Estados que a compõem.

As eleições para o PE desempenham um papel importante numa UE com grande influência na definição das políticas públicas e, como tal, em várias dimensões do dia a dia dos cidadãos. Não se trata de escolher um governo europeu, mas de dar voz a representantes e a diferentes sensibilidades políticas, sociais e nacionais.

No sistema político da UE, o poder e as lideranças estão dispersas e são controladas por múltiplos freios e contrapesos. A UE não é um Estado, o presidente da Comissão Europeia não é um primeiro‑ministro. Saber encontrar equilíbrios entre o poder do Estados‑membros representados no Conselho da União Europeia e no Conselho Europeu e as diferentes sensibilidades representadas no PE é vital para o futuro da Europa.

Contudo, esses canais de representação e de legitimidade são permanentemente desafiados pela dinâmica política, social, nacional e internacional; por isso, são necessárias flexibilidade e uma constante adaptação, para que os sentimentos nacionais e os descontentamentos sociais não fiquem a mercê das vozes populistas e dos movimentos inorgânicos.

Hoje, como ao longo dos últimos setenta anos, o projecto europeu é fundamental para a manutenção da paz, para a consolidação da democracia e para o desenvolvimento do bem‑estar na Europa. A UE, e os seus Estados‑membros, são também, para o resto do mundo, um farol de respeito pelos valores do humanismo, da democracia e do desenvolvimento económico e social.

Encontrar o equilíbrio e aperfeiçoar mecanismos de representação e de governo que permitam assegurar, simultaneamente, a legitimidade democrática e a eficácia das decisões será sempre um trabalho inacabado, mas sem o qual a UE corre o risco de se tornar uma ideia distante dos cidadãos.

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