Sem os outros somos menos que nada
Nestes tempos de mercantilização de cada recanto da nossa existência, reconhecer as pequenas alegrias do quotidiano é essencial.
Assuntos não faltavam. A instrumentalização partidária do caso dos familiares no governo, como se o que tanta indignação agora provoca não fosse transversal a uma sociedade portuguesa que por vezes mais parece uma comunidade de castas, de tal forma a ascensão social parece confinada a quem participa em lógicas grupais bem definidas. Entre elas, sim, também as familiares.
Também poderia reflectir sobre a ponderação do Governo em incluir nos próximos Censos uma pergunta aos cidadãos sobre a sua origem racial-étnica e como isso me divide, entre perceber algumas vantagens políticas em fazê-lo para um conhecimento mais alargado das discriminações, e pensar que é uma regressão perigosa institucionalizar a classificação racial dos cidadãos, como se a categoria de raça não fosse uma construção histórica e social.
E até poderia escrever sobre toda esta onda ecológica consensual que por aí se sente e como ela parece construída sobre fundamentos frágeis. Promove-se a modificação de hábitos individuais, apela-se ao consumo ético ou deseja-se apostar em tecnologia verde, como se fossem grandes mudanças, mas na verdade mais parecem cócegas perante um sistema económico cuja cadeia de produção e consumo acaba por estar na origem do que queremos inverter. É simples: ou mudamos radicalmente o nosso sistema económico ou ele muda radicalmente o nosso mundo.
Estava nisto, preparando-me para escrever, quando se soube que a cineasta Agnès Varda morrera e tudo o resto me pareceu pouco. Não havia muita gente a fazer como ela. Em muitos dos seus filmes os personagens possuíam humanidade, tentavam construir qualquer coisa de caloroso, procurando um certo recolhimento, existindo numa forma paciente de se procurarem a si e aos outros. Era como se em todos os seus projectos nos dissesse: sem os outros somos menos que nada. Um mero espelho sem reflexo.
Nos seus filmes não havia a procura da grande felicidade inalcançável. Mas parecia existir essa crença de que por vezes basta o movimento de irmos na direcção dos outros, um vizinho, alguém com quem nos cruzamos na rua, ou gente que julgámos antes de conhecer, e algo pode acontecer. Era uma proposta de felicidade modesta, que até poderia parecer superficial, mas era real. Nestes tempos de mercantilização de cada recanto da nossa existência, da precarização, da desconexão com o que está à nossa volta, sentados, diante da TV, olhando também para o telemóvel e o computador, as pequenas alegrias do quotidiano, aqueles momentos de sentidos imensamente despertos, são essenciais.
Mas até isso se pode dissolver, adormecidos que estamos, sem percebermos que esses instantes não virão até nós por acaso. Temos que reconhecê-los para ficarem connosco. Coisas sem importância, mas que por vezes nos reconciliam com isto. Uma boa conversa. O primeiro gole de cerveja ao final da tarde. Ir para a cama sem despertador. Aquela sessão de dança. O beijo na filha de quatro anos. Rirmos sem sentido aparente. Tirar os sapatos depois de um dia duro. O cheiro de pão acabado de fazer. Apanhar um taxista calmo. O odor a terra molhada depois de uma tempestade de Verão. Um duche com música que apetece cantar. Uma declaração de amor de alguém que também se ama. Entrar na cama com lençóis lavados. Andar de mão dada na rua. Um verdadeiro e prolongado abraço. À janela, com tempo, vendo as vidas passar.
Pensar na sociedade como uma grande família em que não se compete pela sobrevivência e onde todos têm as necessidades básicas garantidas. Ter tempo. Resistir ao ruído permanente. Imaginar, viajando, existindo. Às vezes é apenas isso. Andamos em círculos, em círculos, em círculos, à procura, e está tudo aqui.