São os horários que podem dar cabo de nós e não a hora legal
Desfasamento entre o relógio interior e os horários que são impostos começa na puberdade e pode acarretar problemas de saúde para toda a vida. São vários os especialistas que têm proposto, por isso, que o início das aulas seja adiado por uma hora.
Seja qual vier a ser a decisão final da União Europeia a propósito da mudança de hora duas vezes por ano, há um problema derivado daquilo que fazemos com as horas que se manterá inalterável, embora as suas consequências se possam vir a agravar em função do que decidir Bruxelas.
Na madrugada deste domingo, há uma hora que fica pelo caminho com a entrada em vigor do horário de Verão, que começa por se adiantar o relógio 60 minutos, um ritual que vai continuar pelo menos até 2021, bem como o seu inverso no Inverno.
Já o problema que se manterá sem resolução tem a ver sobretudo com o modo como o estudo e o trabalho estão organizados ou melhor, com os horários maioritários a que estamos sujeitos por decisão dos Estados e das empresas. E que, sobretudo nos últimos anos, têm vindo a ser postos em causa por cientistas nacionais e estrangeiros já que o seu cumprimento vai contra “ritmos biológicos”, que ainda são dominantes.
Por exemplo, a partir da puberdade “os ritmos do organismo deslocam-se para mais tarde e paradoxalmente é a partir desta altura que as aulas passam a começar mais cedo, tipicamente às 08H30”, aponta a psicóloga e investigadora em sono Ana Allen Gomes.
Em respostas por escrito ao PÚBLICO, a também professora da Universidade de Coimbra, especifica que esta situação leva a que “a partir da puberdade exista claramente uma tensão entre os ritmos internos e os horários externos que é preciso cumprir”.
A este respeito, o neurocientista da Universidade de Oxford Paul Kelly tem alertado que os adolescentes estão a levantar-se, em média, duas ou três horas “mais cedo do que deveriam” porque as aulas nalguns países chegam a começar às 07H30. E os resultados deste desfasamento não são coisa pouca, podendo levar à “privação de sono crónica, o que afecta a capacidade de concentração e pode acarretar problemas de saúde a longo prazo, como obesidade e diabetes”.
Aulas uma hora mais tarde
É por isso, adianta Ana Allen Gomes, que cientistas de vários países “são favoráveis à possibilidade das horas de início das aulas passarem para mais tarde”. Um exemplo concreto: “começar as aulas uma hora mais tarde pode fazer uma enorme diferença ao permitir ganhar uma hora de sono de manhã, o que significa mais cinco horas no final de cada semana de aulas”.
Esta é uma proposta que já apresentou por várias vezes, e outros cientistas portugueses também, mas que continua a cair em saco roto. E não só em Portugal. A nível internacional são de facto poucas as mudanças registadas neste campo devido aos alertas que têm sido feitos. Um estudo publicado em Dezembro passado na revista Science Advances dá conta de um experiência que foi levada por diante com alunos de 15 anos de duas escolas de Seattle, nos EUA.
O início das aulas foi mudado das 07H50 para as 08H45 e os alunos monitorizados duas semanas antes e duas semanas depois desta alteração. Por via desta mudança houve um aumento médio na duração do sono de 34 minutos, o que se traduziu “em mais atenção nas aulas e numa subida de 4,5% nas notas dos alunos”.
Um problema também de estereótipos
Também nas jornadas de trabalho existe um problema do sono, ou da falta dele. Nos estudos que tem desenvolvido, o professor da Foster School of Business de Washington, Christopher Barnes, chegou à conclusão que 70% das pessoas empregadas “acordam mais cedo do que deveriam se o objectivo fosse estarem descansadas e produtivas”.
Barnes seguiu várias empresas onde se tentou resolver o problema através da adopção de horários flexíveis, mas em muitos casos estas experiências falharam graças a um estereótipo que continua a dominar, o de que os trabalhadores que “chegam mais cedo são mais diligentes”. Por essa razão, indica este investigador, nas empresas que adoptaram horários flexíveis, os funcionários que escolheram “horários de entrada mais cedo foram frequentemente mais valorizados nas avaliações de desempenho”, o que ditou o falhanço da aventura.
Outras experiências falhadas. Numa cidade termal da Baviera, Bad Kissingen, desenvolveu-se um projecto a partir de 2013, envolvendo as autoridades locais, com vista a transformar o local na primeira ChronoCity do mundo ou seja, um espaço onde estaria garantido o equilíbrio entre o nosso relógio interior e os ritmos impostos pelo exterior, o que passaria entre muitas outras medidas por começar as aulas mais tarde, pela adopção de horários flexíveis nas empresas e por alterar os edifícios de modo a que favorecer a entrada de mais luz do dia.
Mas na prática nada acabou por mudar, indicou ao PÚBLICO o porta-voz da câmara de Bad Kissingen, embora o projecto ChronoCity “continue a ser importante para a cidade devido ao seu na saúde”.
No meio de todo este cenário, não é o facto de a hora mudar duas vezes por ano, uma no Inverno e outra no Verão, que leva os humanos a ressentirem-se com gravidade. “Mudanças horárias como esta, inferiores a duas horas, não têm um impacto muito significativo, sendo relativamente rápido o ajustamento do organismo ao novo horário”, comenta Ana Allen Gomes.
Mas se o processo em curso na União Europeia com vista a acabar com esta mudança horária se traduzir em ficarmos para sempre na hora de Verão, o caso pode mudar de figura. Esta é a opção preferida dos portugueses que participaram num inquérito promovido pela UE, onde a maioria dos mais de quatro milhões de participantes a nível europeu se pronunciou a favor do fim da mudança bi-horária.
Durante o Verão, Portugal está desfasado da hora solar 1h37 minutos. Se na estação de Inverno a hora oficial fosse a do Verão, tal implicaria um amanhecer tardio, chegando a ser por volta das 09H00 em alguns meses. “Muito mais pessoas teriam de se levantar de madrugada e fazer todo o trajecto da manhã sem luz com impactos no seu estado de vigilância, podendo haver mais riscos durante as deslocações rodoviárias, por exemplo”, avisa Ana Allen Gomes.