Fake news e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos
Para o TEDH, as fake news nas sociedades democráticas, ainda que puníveis, não devem levar à prisão.
“Uma adolescente de Turim foi forçada pelos pais a fazer um aborto... o magistrado ouviu as partes e aplicou a lei – a lei! – ordenando o aborto compulsório... ela não queria. Ela lutou... Agora a jovem mãe (uma mulher ainda é considerada como mãe, mesmo se o seu filho morreu) foi hospitalizada como doente mental. Ela gritou em vão ‘se matarem meu filho, vou-me suicidar’... se houvesse a pena de morte, este teria sido o caso em que a mesma seria aplicável aos pais da jovem, ao ginecologista e ao juiz de família... a medicina e o judiciário são cúmplices deste aborto coercivo.”
A publicação deste texto com o título “Juiz ordena aborto. A lei é mais forte que a vida”, e de um outro no mesmo sentido, no dia 18 de Fevereiro de 2007, no jornal diário italiano Libero, de que o jornalista Alessandro Sallusti era o editor-chefe, levaram à aplicação de uma pena de prisão não suspensa a este jornalista que passou quase um mês em prisão domiciliária até que o Presidente da República lhe comutou a pena de prisão em multa.
Quem apresentou a queixa foi o juiz de família invocando a falsidade de tais afirmações. Na verdade, a mesma notícia tinha sido publicada no jornal La Stampa no dia 16 de Fevereiro mas, no dia 17, foi desmentida em todos os meios de comunicação, por ser falso que a menor tivesse sido pressionada, tendo a Interrupção voluntária de gravidez sido decidida por si.
Alessandro Sallusti não escreveu os artigos mas, não se tendo apurado a identidade dos autores, respondeu pela sua publicação dada a sua qualidade de editor-chefe e, nos tribunais, não conseguiu provar a verdade da acusação que fizera. No tribunal de primeira instância foi condenado no pagamento de uma multa de 5000 euros, 10.000 euros de indemnização ao magistrado em causa e 2500 de custas judiciais, para além da publicação da sentença no seu jornal, já que os artigos tinham informações factuais falsas e tinham ofendido gravemente a reputação do magistrado em causa.
No tribunal de recurso, as penas foram agravadas: Alessandro Sallusti foi condenado a um ano e dois meses de prisão com uma multa de 5000 euros e a indemnização subiu para 30.000 euros. Felizmente para o jornalista, o tribunal de primeira instância decidiu que podia cumprir a pena em prisão domiciliária e o Presidente da República comutou-lhe a pena de prisão numa multa de 15.532 euros, pelo que só passou 22 dias preso em casa.
Na sua decisão de comutação da pena, o Presidente da República italiana lembrou as críticas que têm sido feitas pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) a respeito da aplicação de penas de prisão a jornalistas e sublinhou que a legislação em Itália sobre esta matéria estava a ser revista.
Alessandro Sallusti recorreu, então, ao TEDH queixando-se da violação da sua liberdade de expressão, nomeadamente porque a pena de prisão era absolutamente desproporcionada em relação aos factos em causa. O governo italiano defendeu que o facto de o jornalista ter ofendido não só o magistrado como violado a privacidade da menor, não estando de boa-fé e tendo fornecido informação não credível e falsa, justificava plenamente a pena de prisão.
O TEDH concordou com o governo italiano que Alessandro Sallusti tinha violado as regras éticas do jornalismo fornecendo informações graves sem as confirmar, pelo que não censurou as autoridades italianas por terem sancionado o jornalista, mas, para o TEDH, a condenação em penas de prisão por crimes relacionados com a palavra só pode, eventualmente, justificar-se no caso de linguagem de ódio ou de incitamento à violência. O efeito intimidatório das penas de prisão em casos relacionados com a liberdade de expressão é imenso: se as pessoas começam a ter medo de ir presas por dizerem ou escreverem o que pensam, fatalmente teremos uma sociedade menos democrática, mais empobrecida.
O TEDH não teve, assim, dúvidas, no passado dia 6, em declarar que, por violação do princípio da proporcionalidade, por não ser necessária numa sociedade democrática, a condenação de Sallusti violara a liberdade de expressão consagrada na Convenção Europeia dos Direitos Humanos e condenou a Itália a indemnizar o jornalista em 12.000 euros acrescidos de 5000 de custos do processo.
Para o TEDH, as fake news nas sociedades democráticas, ainda que puníveis, não devem levar à prisão.