Na Almirante Reis, os médicos não se perdem na tradução — perante mais de 70 nacionalidades
A Unidade de Saúde Familiar Almirante fica no bairro mais multicultural de Lisboa e há utentes de mais de 70 nacionalidades. Nas consultas, para nada se perder na tradução, chega-se a recorrer a tradutor improvisado, que tanto pode ser um filho como um desconhecido. Os médicos apontam problemas, mas também soluções.
Sara Fahia Akter viajou do Bangladesh para Lisboa em Novembro de 2018, mês em que também nasceu a Unidade de Saúde Familiar Almirante, que se acha numa rua perpendicular à Igreja da agitada e sonora Avenida Almirante Reis, no centro da capital. Sara, de 23 anos, é uma das 12.583 pessoas inscritas nesta jovem unidade, que trabalha com 73 nacionalidades. Além do português, o nepali, romeno, mandarim e bengali são as línguas que mais se ouvem nos corredores do edifício central da Rua Luís Pinto Moitinho.
Como muitos utentes, Sara Akter não fala português e o inglês é-lhe pouco familiar. Aguarda por ouvir o seu nome, sentada na sala de espera, junto da sua filha pequena que fixa a barriga, ainda discreta, da mãe. “Está a ver o irmão”, ri-se Sara, grávida de quase seis meses. Por norma, vem à Unidade de Saúde Familiar acompanhada pelo marido, que, como conta a bengali, fala pelos dois nas consultas. “Ele fala melhor que eu”, explica. “Mas hoje vim sem ele. Está com problemas no trabalho.”
Pelos corredores da Unidade de Saúde Familiar estão dispersos panfletos que explicam o sistema nacional de saúde em inglês, nepali, bengali, mandarim e urdo. Há também folhetos com a tabela de alimentos para as crianças traduzidos nestas línguas e outros com informação sobre saúde sexual e métodos contraceptivos. Sara só teve tempo para os ler de relance. Depois de ser vista por uma enfermeira, que faz o acompanhamento da gravidez, a utente é minutos depois recebida pelo médico Fabrizio Cossutta, que viajou de Itália para Lisboa há oito anos.
Na consulta com o médico, jovem e sem bata, Sara faz o exame doppler, para ouvir o coração do bebé, e mostra as últimas análises. Para que tudo seja compreendido, Sara repete o que sente, Fabrizio repete as indicações. Mas às vezes, a luta com as palavras não chega; é necessário recorrer a ferramentas como o Google Translate, um tradutor virtual — que também falha. “Precisava de dizer que no primeiro ano de vida a criança tem de introduzir determinados alimentos por uma ordem. E escrevi peru [turkey em inglês] no Google Translate para traduzir para bengali, mas o Google assumiu que eu estava a dizer Turquia [o país, cujo nome em inglês também se escreve Turkey]”, conta Fabrizio ao PÚBLICO. Ainda assim, as dificuldades são ultrapassadas. “Quando não entendo, o médico mostra imagens. Encontramos sempre uma solução”, acrescenta a bengali.
Antes de sair do gabinete, Sara aproveita para falar sobre as suas inquietações além do campo da saúde: está com dificuldades em obter o número de segurança social. O tema é complexo e palavroso, mas Shara tenta explicar-se o melhor que consegue.
- “Sorry for the bad english [Desculpa pelo mau inglês]”, vai repetindo ao longo da consulta.
As cidades mudam. E os serviços?
Se Sara Akter ainda se está a adaptar aos costumes e novidades de Portugal, também a Unidade de Saúde Familiar Almirante tenta acompanhar as mudanças especificas da cidade de Lisboa. “As mudanças da cidade e nas populações são cada vez mais rápidas e é difícil os serviços se adaptarem”, diz Josina Almeida, responsável administrativa da Unidade de Saúde. Uma das mudanças é, desde logo, a diminuição do número de utentes portugueses, mesmo que continuem a ser a maioria. “Com o problema da gentrificação, os portugueses deixam de conseguir viver nesta zona e deixam de ter registo aqui”, explica Fabrizio. Por outro lado, o número de utentes de diferentes nacionalidades e culturas tende a crescer.
Para responder às necessidades de mais de 12 mil utentes há oito médicos: todos recém-especialistas, entre os 30 e 35 anos, e divididos em microequipas compostas igualmente por oito enfermeiros e cinco administrativos. A médica Susana Reis, de 33 anos, garante que a equipa é “muito fresca”: “Nós queremos muito pôr em prática tudo o que aprendemos no internato. Temos estímulo para tentarmos mudar um pouco as coisas”, conta. Contudo, nota dificuldades. Natural de Famalicão, Susana Reis ainda se está a adaptar ao ritmo plural do centro de Lisboa. “A nossa base é a comunicação, se a comunicação não acontece dificulta tudo. É muito complicado eu querer passar uma mensagem de um tratamento, uma orientação, e sentir que não consigo ultrapassar esta barreira linguística”, explica a médica.
A dificuldade na comunicação com utentes de mais de 70 nacionalidades é sentida, desde logo, pelo atendimento clínico, a linha da frente do serviço médico. Ana Santos, uma das responsáveis pelo atendimento no terceiro andar, conta que “as dificuldades são diárias”. “Às vezes, é complicado. Só sei o inglês e é assim o mínimo”, acrescenta. Tânia Lopes, 38 anos, enfermeira-chefe, afirma que, além dos médicos, os enfermeiros da Unidade de Saúde “arranham o inglês”. “Uns mais que outros”, reconhece. No seu caso, aprendeu “o inglês da escola”, ao qual só dava uso “numa viagem ou outra”. Agora, a língua inglesa é um instrumento de trabalho. “Tenho-me safado”, garante. “Esta manhã atendi duas utentes do Nepal. Com a última senhora foi mais difícil, às vezes temos de nos entender com linguagem gestual.”
Para Fabrizio, os médicos, enfermeiros e secretariado não têm a formação necessária para responder às necessidades específicas desta zona da cidade. “Nós não conseguimos falar todas as línguas. Isso significava saber falar mais de 30 línguas. Na maior parte dos casos, utilizamos o inglês como língua comum, mas muitos profissionais de saúde não têm formação para falar o inglês médico, que é diferente do inglês coloquial”, explica. Por outro lado, acrescenta Josina, há muitos utentes que não entendem inglês, “o que pode levar a que sejam mal encaminhados.”
Quando os filhos são os tradutores
São várias as vezes em que os panfletos não são suficientes; em que os gestos, as imagens, o recurso ao Google Translate, os esforços acrescidos para preencher as lacunas de comunicação não conseguem fazer com que o entendimento seja mútuo. Nestas situações, mais comuns do que o desejável, tenta-se incluir uma terceira pessoa na consulta.
“Tenho muitos utentes do Nepal que não falam português nem inglês, mas os filhos nasceram em Portugal, e com seis ou sete anos já falam português. Há muitos casos em que são os próprios filhos que fazem de tradutores”, explica Susana Reis. Mas esta situação “não é de todo a ideal”, uma vez que traz constrangimentos, principalmente quando é necessário falar de temas sensíveis da vida íntima. “Falar de sexualidade com uma utente e ser o filho pequenino a traduzir é complicado”, conta.
O médico Fabrizio alerta para outras complicações: “Quando se trata de cancro, como é que peço a um filho para traduzir o que eu digo aos pais?”. “Às vezes, até se criam atritos entre a família porque o utente acha que o familiar que transmitiu a informação ouviu ou percebeu mal o que o médico disse”, reforça. Também acontece os utentes, quando estão sozinhos, pedirem a outra pessoa, desconhecida, que está na sala da espera para que ajude a traduzir a consulta. Segundo o médico, esta alternativa já ajudou em muitas consultas, mas não é a opção mais “confortável”, uma vez que as pessoas não se conhecem.
Mais incentivos ou mais formação?
Quando trabalhava em Londres, Fabrizio garante que estes cenários não aconteciam: as consultas eram acompanhadas por mediadores culturais. “Pessoas com formação, preparadas, pagas para este exercício”, explica. Em Portugal, há alguns utentes que levam tradutores e existe um serviço de apoio de tradução telefónica que, apesar do peso do custo, só é passível de ser utilizado com agendamento prévio. “Quando uma pessoa vem às consultas abertas [consultas marcadas e realizadas no mesmo dia] não é possível programar o serviço de tradução”, exemplifica. “Isto é uma barreira no acesso à saúde, e pode ser complicado para nós e para os utentes”, conta Fabrizio, que, apesar de assumir que a Unidade de Saúde Familiar não tem capacidade para novas contratações, aponta como possível solução a ajuda do Ministério da Saúde.
Esta ajuda podia passar, na opinião do médico, por uma distribuição “menos aleatória” na forma como os profissionais são colocados nos serviços de saúde. “Eu falo italiano, por acaso calhei aqui na Almirante Reis, que fica ao pé da embaixada [de Itália], e posso ser uma mais-valia. Mas há médicos que falam outras línguas e que são colocados em sítios onde só há praticamente utentes portugueses”, explica. “O que existe noutros países são incentivos para pessoas que falam outras línguas sejam alocados a zonas onde se fala essas línguas. É preciso algum incentivo por parte do estado para cativar os profissionais.”
A formação das listas de utentes também merece propostas de alterações: é necessário começar a equacionar as barreiras linguísticas. “Normalmente só se contam as idades, se é criança, adulto ou idoso, mas o facto de ser desempregado não conta, de ter outra religião, de ser estrangeiro não conta”, critica. A falta de sensibilidade das listas dos utentes faz com que estas unidades enfrentem acrescidas dificuldades. “O número de utentes que nós temos é igual ao de outras unidades, só que o trabalho a nível de comunicação é diferente. Demoramos mais tempo. Por exemplo, há casos de mulheres de outros países que chegam à sala de espera, mas ainda não chegou o acompanhante. Nós temos de ficar à espera. Isso reflecte-se em atrasos”, exemplifica.
Apostar na formação das equipas clínicas nas áreas onde há utentes de várias nacionalidades é outra das possíveis soluções defendida pela médica Susana Reis: “Era bom algum tipo de investimento dos nossos responsáveis. Tirar as pessoas um pouco do atendimento e ter cursos de conversação. Já foi pedido formação interna para toda a equipa. Mas acaba por não ser uma preocupação [para os responsáveis] porque nós vamos conseguindo, bem ou mal, resolver o problema”. Com a falta de apoio, há profissionais que investem, a título pessoal, em cursos. “Uma colega minha está a tirar um curso, mas tem de ser pós-laboral e é ela que paga. É um investimento pessoal também, claro, mas isto é uma questão que faz parte do trabalho.”
Saúde livre de preconceitos
Para que a equipa médica se consiga adaptar às necessidades de toda a população, através de cuidados centrados nos utentes, é preciso que os profissionais vivam livres de preconceitos culturais. “Nós entendemos a nossa cultura como aquilo que está certo, e podemos achar que cientificamente há formas mais apropriadas que outras para resolver problemas, mas temos de aceitar as limitações de cada cultura”, conta Fabrizio. Até porque, para o italiano, é possível encontrar semelhança na diferença. “No Nepal coloca-se pulseiras pretas à volta dos pulsos e tornozelos das crianças para afastar os espíritos quando saem à rua. Para nós, parece algo muito estranho, mas nós temos um crucifixo.”
Numa consulta, as diferentes crenças, valores e contextos podem-se manifestar das mais variadas formas. “Até na maneira como as pessoas se referem a determinados sintomas varia muito de país para país”, diz Fabrizio. “Nós não temos formação para isso, temos de ir aprendendo”, sublinha. Contudo, a primeira lição já está estudada: tratar os milhares de utentes no singular. “Não podemos colocar as pessoas em caixinhas, nem mesmo quando partilham a mesma nacionalidade”, conta.
As doenças a ter em atenção deixam também de ser apenas as comuns em Portugal. “Temos muita atenção com as grávidas, porque há muitas que casam com familiares. Também há doenças especificas da gravidez que em Lisboa não são frequentes”, acrescenta Susana, que diz aprender com os utentes todos os dias. “Eles vão dizendo que no país deles se faz assim, e que é normal. E nós temos de nos ir adaptando. É preciso respeitar os utentes. O importante é fazer de tudo para que a mensagem seja compreendida e que ajude as pessoas.”