O inferno é um baile tropical dos Chúpame El Dedo

Ao segundo álbum, Eblis Álvarez (o homem dos Meridian Brothers) e Pedro Ojeda (Romperayo) não desaceleram na insanidade que passam para a sua música em duo. No te Metas com Satan passa pelo Tremor a 12 de Abril.

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Há já algum tempo que Eblis Álvarez se autodiagnosticou com uma obsessão por discos antigos. Das décadas de 40 e 50, sem interrupções, até aos anos 90. E de música latino-americana em particular. A partir dos anos 2000, a cultura local começava a parecer-lhe mais desinteressante e enfraquecida, e a produção de música interessava-lhe menos. Mas em vez de ver nisso somente uma nostalgia artística que podia alimentar a sua criação musical e levá-lo a inspirar-se em canções clássicas e longínquas, em vez de se tomar apenas por um compositor desinteressado da produção contemporânea e pouco sintonizado com a música assinada pelos seus pares, o homem que conhecemos como líder dos Meridian Brothers e membro de Los Piranãs e Chúpame El Dedo quis procurar conclusões para o gesto intuitivo de ter voltado a ocupar o gira-discos sobretudo com álbuns dos anos 50 e 60.

E a conclusão a que chegou foi a de que os efeitos da globalização não trouxeram apenas consequências económicas e políticas, mas também uma terraplanagem da música popular, tornando-a indistinta, com pequenas diferenças se produzida na Argentina ou em França. “Há muito trânsito de músicos a viajar por todo o lado e isso tem algo de muito bonito”, contextualiza Eblis Álvarez ao Ípsilon. “Em teoria, isso resulta numa maior comunicação, mas agora já me parece que começa a parecer-se tudo igual, toda a gente a ter as mesmas influências, o mesmo acesso à tecnologia e o mesmo acesso democrático a instrumentos musicais.” Os evidentes ganhos sociais, que Álvarez saúda, conduziram, no entanto, a uma cultura enfraquecida, indistinta e “muito aborrecida”. “No mar das minhas investigações musicais”, confessa, “começo a sentir-me muito desorientado com a nova música que oiço – dos outros, mas também a minha.” Como se, de súbito, os vários sotaques se tivessem perdido e todos se entendessem mas, no fim de contas, acabassem a dizer a mesmíssima coisa, com as mesmas palavras, ao mesmo tempo e na mesma entoação.

Agindo de forma consequente, Eblis virou-se para aquilo que, há 20 anos, era visto como “endogamia cultural” na Colômbia: o fechamento de algumas escolas musicais, numa atitude de preservação museológica do folclore local era visto como “algo negativo”. “Hoje em dia”, diz o músico, “parece-me necessário para evitar a destruição da cultura. A globalização, que nessa altura se pensava que ia salvar a Humanidade, está a causar danos ecológicos e humanos, e a destruir a cultura – que, precisamente, está a tornar-se cada vez mais superficial.” Daí que Eblis tenha começado a levar a cabo uma série de experiências de “restauro sonoro”, a partir de composições suas. Aos poucos, para sua surpresa, essas experiências deixaram de servir de mero exercício de partida em busca dessas sonoridades passadas e tornaram-se um legítimo caminho criativo.

Esse novo caminho que Eblis inaugurou para os seus Meridian Brothers enquanto museu vivo teve um primeiro momento com a edição, no final de 2018, do single La Policía, partilhado com o Grupo Renacimiento. São dois temas ancorados na intocada tradição de um dos géneros mais populares na América Latina – a salsa –, tocados como se vivêssemos ainda em plenos anos 70, sem qualquer resquício da febre tropical que costuma conduzir os temas da banda. “Nestes novos singles que quero gravar estou a emular um tipo de salsa gravado numa época concreta, seguindo um método completamente de museu”, garante. O que implica que o policiamento aconteça não apenas na letra que brinca com a corrupção das autoridades de Bogotá, mas também que Álvarez aplique um freio na sua inventividade para não manchar esse nobre desígnio de fidelidade histórica.

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A origem dos Chúpame El Dedo remonta a 2014 e surge dos repetidos encontros entre Eblis Álvarez e Pedro Ojeda, duas mentes sempre a fervilhar com ideias frequentemente absurdas

É uma de duas respostas que dirige à “entropia da globalização, resultante da combinação frenética de muitas coisas com muitas coisas, equivalente a uma massa pouco homogénea e profunda”: para os Meridian Brothers guardou este desejo museológico de abordar a música; para os Chúpame El Dedo, duo partilhado com Pedro Ojeda (Romperayo, Los Pirañas, Frente Cumbiero e Ondatrópica), a ideia tem sido a de reduzir o escopo e provocar o choque de dois universos de cada vez. No primeiro álbum, homónimo, os dados ditaram a combinação entre death metal e sons tropicais. Agora, com a edição de No te Metas con Satan, as agulhas viraram na direcção de dembow cruzado com as mesmas propriedades alucinogéneas das selvas dos trópicos. É esse reportório que o duo desemalará nos Açores daqui por três semanas, quando actuar na Ribeira Grande, a 12 de Março, no cartaz do festival Tremor (há dois anos haviam também passado pelo Milhões de Festa).

Cura de fertilidade

A origem dos Chúpame El Dedo remonta a 2014 e surge dos repetidos encontros entre Eblis Álvarez e Pedro Ojeda nos concertos de Los Pirañas, Frente Cumbiero e Romperayo. Duas mentes sempre a fervilhar com ideias frequentemente absurdas – em 2018, Eblis lançou também o primeiro álbum do Grupo San Francisco de Assis, um colectivo dedicado àquilo que define como “falso punk cristão” –, a diferença para tantos outros músicos com igual queda para o disparate é que, nas mãos destes colombianos, aquilo que parece delírio provocado por estados de alteridade avançada encontra depois forma real e – mais do que isso – soa muito melhor do que se poderia prever. Ou seja, não resulta numa piada que nada carrega consigo depois de um par de gargalhadas, mas em propostas musicais que viajam muito além do exotismo inicial.

O surgimento dos Chúpame El Dedo resultou também da encomenda de um concerto por parte da Haus der Kulturen der Welt (Casa das Culturas do Mundo), em Berlim, para aquilo que, à partida, poderia não passar de um espectáculo avulso. Só que essa mescla demente de elementos de death metal, black metal ou grindcore com percussões fisgadas à salsa e à cumbia acabaria por escancarar uma tal imensidão de soluções que a ideia não se esgotou no dia seguinte. Até porque a formação do duo, pelo menos até à data, joga-se na justaposição entre esse cardápio rítmico tropical assegurado pela bateria acústica de Ojeda e a panóplia de sintetizadores e vocalizações adulteradas de Álvarez. Ou seja, se o metal estava na cabeça dos dois, aquilo que se escutava era, afinal, a aplicação desses elementos a uma sonoridade que mais parecia pertencente a uma feira plantada no meio de uma selva, com melodias atiradas por uma voz de cabine de carrinhos de choque e um tom permanente de desbragado delírio.

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Chúpame El Dedo, o disco de estreia, coincidia com a consciência de Eblis Álvarez que a enorme fertilidade criativa da sua juventude começava a encontrar alguns becos e percorrer trilhos por que já antes tinha passado. “De início”, lembra, “todas as possibilidades existiam e compunha um pouco num modo de surrealismo, todas as ideias e todos os sons cabiam nessa criação disparatada, em que a tecnologia, por ser menos presente, nos obrigava a variar muito mais os sons.” À medida que os anos foram avançando, o músico começou, por isso, a trabalhar com um plano que lhe permitia enfrentar a menor fertilidade, delimitando cada disco ou projecto a uma diferente conjugação de factores. “Cada disco tem agora uma ideia mestra que tento seguir. Estou, no fundo, a plantar ideias para o futuro.”

Para No te Metas com Satan, os dois Chúpame El Dedo alteraram ligeiramente as coordenadas. As referências dos subgéneros do metal foram varridas para um canto – apesar de o álbum arrancar com No te metas com Satan e Metalero – e a bateria suada e de temperatura indomada de Oveda é agora acompanhada pelo recurso a sons inspirados pelo dembow dominicano e pelo trap. O dembow é um dos muitos filhos bastardos que o reggaeton foi espalhando pela América Latina, enquanto o trap é uma derivação do hip-hop, e são as suas interpretações muito particulares pelos dois colombianos a abastecer um disco tão lúdico, desconcertante, precário e desvairado quanto era o seu antecessor. A diferença é que, agora, temas como Peos, Amo a mi familia ou Mi ancestro berraco (quase didáctica na apresentação dos ritmos) são ainda mais apontadas ao baile dos Chúpame El Dedo.

Um baile, no entanto, que continua a imaginar-se nos confins de um qualquer inferno terreno. Debaixo de um calor insuportável e em que a realidade só já está presa por um fio gasto que pode quebrar-se a qualquer momento.

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