A memória passada a limpo
Romance de formação, que revisita o período mais negro da ditadura militar brasileira, o livro de Milton Hatoum é também um romance sobre Brasília.
Muitos leitores portugueses — em geral tão distraídos dos autores brasileiros quanto os leitores brasileiros costumam andar desencontrados dos escritores portugueses, embora uns e outros leiam e escrevam, aparentemente, na mesma língua — terão ficado a dever a descoberta de Milton Hatoum (Manaus, 1952) ao editor da Cotovia, André Fernandes Jorge, que, há duas décadas, publicou Relato de Um Certo Oriente e Dois Irmãos. Pela mesma época, curiosamente, a Relógio D’Água colocava ao alcance dos portugueses a obra escassa mas preciosa de outro grande escritor brasileiro contemporâneo, Raduan Nassar, da geração anterior à de Hatoum. As obras de ambos os escritores vêm sendo reeditadas pela Companhia das Letras que, tendo publicado A Noite da Espera em 2017 no Brasil, publicou agora esta obra em Portugal. O novo livro de Hatoum inicia uma trilogia, intitulada O Lugar Mais Sombrio, e pôs termo a um silêncio demorado: o escritor não publicava um romance há nove anos.
A Noite da Espera é um romance de formação em forma de diário retrospectivo. Em 1977, com 26 anos de idade, expatriado em Paris — onde sobrevive de biscates, vendendo aulas de português ao domicílio e tocando guitarra no metro —, Martim revive sua ida com o pai para Brasília, dez anos antes, depois de a mãe ter saído de casa, em São Paulo, para ir “viver com o artista”. Trata-se, como diz uma avó do protagonista, de “uma família de sumidos e desgarrados, que não sentem saudades” (p. 44). O tema da desestruturação do núcleo familiar, matriz ou símile de outras mais vastas, sociais e políticas, não é novo em Hatoum. Sobre o adolescente Martim abate-se uma dupla e dolorosa ‘orfandade’, pois à deserção da mãe soma-se a silenciosa hostilidade paterna: “era raro meu pai falar diretamente comigo: as palavras dirigidas a mim eram ditas à minha mãe, e agora não havia espelho nem anteparo às palavras paternas” (p. 25). Silêncio quebrado apenas pelo ressentimento: “Eu não podia viver perto da tua mãe e daquele sujeito. Seria pior. Ela nos surpreendeu, e me traiu. Você também foi traído.” (p. 34) Note-se que este filho, espartilhado pela guerra conjugal dos progenitores, parece por vezes querer desvincular-se destes tratando-os pelos respectivos nomes próprios. Particularmente interessante e significativo é o paralelismo ensaiado no episódio da viagem que o protagonista faz até Goiânia, onde espera encontrar-se com a mãe, que não vê há mais de dois anos. No hotel, prosseguindo a leitura de A Educação Sentimental, Martim lê “a passagem em que Frédéric e Mme Arnoux se encontrariam às três da tarde num apartamento em Paris, o primeiro rendez-vous amoroso, verdadeiro e clandestino.” — “Frédéric sonhava com esse encontro, e eu com minha mãe; eram três horas da tarde no romance de Flaubert e no hotel em Goiânia, Mme Arnoux e minha mãe não apareciam.” (p. 111)
Ao deserto afectivo, soma-se, no caso da relação com o pai, Rodolfo, uma total oposição de ideias políticas. Apoiante da ditadura militar que anoiteceu o Brasil em 1964, Rodolfo é um engenheiro que vai para Brasília trabalhar no Novacap, o organismo público que em três anos dera asas ao mais portentoso e radical feito urbanístico do século XX, gizado por Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Joaquim Cardozo, o engenheiro-poeta (e não só). No entanto, são vários os remoques com os quais o engenheiro brinda a cidade: “Esses edifícios da Asa Norte foram construídos às pressas. A pintura da fachada desbotou, o reboco é uma porcaria, já está estufado. Inauguraram uma cidade que ainda é um canteiro de obras.” (p. 33) Recorde-se que a então novíssima capital fora inaugurada em 1960 pelo Presidente Kubitschek. E, lembrando o Paraíso paulistano onde moravam, o pai barafusta: “mas você quer comparar o nosso bairro com essa Asa Norte? Isso não é bairro, não é nada. O que é que os arquitetos comunistas tinham na cabeça quando projetaram essa droga? No sector comercial tem uma padaria, um bar e umas lojas horrorosas, vazias. O transporte público é outra droga. O bloco vizinho é um pardieiro […].” (p. 34)
Sendo a história da educação sentimental do protagonista, A Noite da Espera é igualmente um interessantíssimo romance sobre Brasília. À perspectiva agastada do pai, Martin contrapõe uma observação melancólica, quase existencialista, da vida quotidiana no Planalto Central, na “capital da esperança”, na primeira década da sua existência. Logo à chegada, em Janeiro de 1968, anota: “Saí do hotel à procura do centro da cidade, mas não o encontrei: o centro era toda a cidade.” (p. 31) E, numa carta à mãe, escreve: “Os bairros e avenidas têm siglas com letras e números, me perdi no primeiro passeio pelas superquadras da Asa Sul, parecia que estava no mesmo lugar, olhando os mesmos edifícios. […] Tudo confunde, nada lembra lugar algum.” (p. 33) E há uma persistente “impressão de cidade vazia, abandonada às pressas” (p. 41), “cidade de forasteiros” (p. 72). Também o embaixador que perdeu as graças do Itamaraty e empresta livros de poesia ao narrador se queixa da “cidade em que tudo é seco: o clima, a cultura, a vida.” (p. 247)
A “longa noite da espera” (frustrada) do protagonista pelo reencontro de sua mãe é, igualmente, a travessia do período mais agudo da ditadura militar brasileira, entre 1968 e 1972, desfilando no romance todas as heróicas ilusões da juventude estudantil da época. Mas, não obstante a agitação política, cultural e sentimental de que participa, Martim, mais do que protagonizar os acontecimentos, parece ser levado por eles. E talvez seja essa indecidível passividade da espera que o qualifica enquanto narrador. A rememoração de Martim, em Paris, é alimentada pela “papelada de Brasília e São Paulo: cadernos, fotografias, cadernetas, folhas soltas, guardanapos com frases rabiscadas, cartas e diários de amigos” (p. 20) onde repousam “anotações intermitentes, escritas aos solavancos: palavras ébrias num tempo salteado.” (p. 21) Tais materiais ora certificam o curso da memória do narrador, ora o suspendem na fixidez enigmática de um gesto, um olhar, um silêncio. Mas há sempre um hiato, um diferimento, entre o (re)vivido na memória e o narrado, e aí se instala o filtro da escrita. Quando Martim afirma “Comecei a datilografar os manuscritos”, aí começa também o trabalho de Milton Hatoum: passar a memória a limpo.