Um milhão de pessoas nas ruas de Londres e militares nas ruas de Paris
As duas grandes nações europeias – irmãs-inimigas ao longo da sua história milenar – vivem momentos de grande tensão política em que jogam, em parte, os seus destinos.
1. Ontem, cerca de um milhão de pessoas caminharam pelas ruas de Londres em protesto contra a saída do Reino Unido da União Europeia, numa gigantesca demonstração pacífica. Os transportes públicos ingleses registaram um afluxo inesperado de gente, vinda de todos os pontos do país. Uma manifestação, por maior que seja, não substitui um referendo. Não são sequer realidades comparáveis. Mas a sua dimensão e a sua pluralidade são uma demonstração de vontade que nenhum governo ou Parlamento deveriam ignorar. Como escreveu Timothy Garton Ash no The Guardian, não deve haver memória de uma manifestação destas dimensões a favor da Europa em qualquer país europeu. Em contrapartida, a “marcha sobre Londres” animada por Nigel Farage para mobilizar os defensores do “Brexit” não está a ter o sucesso desejado pelos organizadores. Uma petição de cidadãos contra a saída dirigida ao Parlamento ultrapassou em três dias 4 milhões de assinaturas.
Entretanto, em Paris, o Governo de Emmanuel Macron viu-se obrigado a interditar as ruas centrais da capital francesa e de outras grandes cidades e a recorrer aos militares, para evitar a repetição das cenas de violência incontrolada da manifestação semanal dos gilets jaunes de sábado passado. O Presidente francês não consegue retomar o controlo da agenda política enquanto este movimento inorgânico e violento, desde o seu início, não estiver debelado. O recurso aos militares pode ser legítimo, mas é sempre polémico em qualquer sociedade democrática. Tem, portanto, um custo.
As duas grandes nações europeias – irmãs-inimigas ao longo da sua história milenar – vivem momentos de grande tensão política em que jogam, em parte, os seus destinos. E com eles, jogam também o destino da União Europeia.
2. Em Londres, já teve início a contagem decrescente para o fim do mandato de Theresa May. Apesar de ninguém saber exactamente o que se seguirá depois da sua queda, a sensação de inevitabilidade já não é matéria de opinião mas de facto. May esgotou todas as armas e todos os recursos para levar o seu acordo de saída a bom porto. Teimou, porventura, para além do que seria racional. Acaba da mesma maneira que o seu antecessor David Cameron: ao querer apaziguar os extremistas do seu partido, acabou por ficar prisioneira do seu radicalismo. Na quinta-feira passada, em Bruxelas, o tom que usou com os seus pares europeus foi escutado por alguns como uma despedida. Levou para casa um adiamento e duas datas. Se o seu acordo ainda vier a ser sujeito a votos no Parlamento britânico (e o seu Gabinete já reconheceu ontem que isso não deve acontecer), terá até ao dia 22 de Maio para preparar a saída. Se não, terá de apresentar à União uma solução alternativa com princípio, meio e fim até ao dia 12 de Abril. Será, porventura, o seu último acto, se o conseguir levar a cabo.
Que alternativa? É a pergunta para a qual ninguém parece ter ainda uma resposta. Novas eleições? Com que liderança dos Tories? Com que programa político do Labour? Um novo referendo? Seria preciso que May e Corbyn acreditassem mesmo que era essa a solução mais democrática para que pudesse acontecer. Nem a primeira-ministra, nem o líder trabalhista são suficientemente europeístas para arriscarem. É esse também um dos dramas do “Brexit”: a coincidência entre lideranças muito pouco crentes no bem comum que a União Europeia representa nos dois grandes partidos britânicos. Não se espera que Corbyn tenha a coragem (ou a vontade) de fazer uma campanha a favor da permanência. Pode esperar-se que apresente um novo programa de negociação da saída, incluindo a possibilidade de manter o Reino Unido na União Aduaneira ou mesmo no Mercado Interno e afastando as linhas vermelhas que levaram ao actual impasse em torno da questão irlandesa. Mas as sondagens demonstram que a vitória do Labour é tudo menos certa, como demonstram também que a vitória do “Remain” num novo referendo mantém um elevado grau de incerteza.
Ontem, no Financial Times, Robert Cooper, um antigo diplomata britânico, lembrava os planos iniciais de David Davis, o primeiro responsável pela pasta do “Brexit” no Governo de Londres, segundo os quais seria possível sair da União e manter “exactamente os mesmo benefícios” do Mercado Único. Ou os erros de cálculo do mesmo Governo sobre o comportamento dos seus parceiros europeus, para descobrir tarde de mais que “a Alemanha se preocuparia mais com a integridade da União Europeia do que com a venda dos seus BMW.” Ou, ainda, que o Reino Unido, afinal, não “detinha todas as cartas” na mão, nas palavras imprudentes de Michael Gove. O editorial do FT lembrava outras perversões de um processo que nunca se preocupou em unir de novo o país. Theresa May nunca levou em consideração a realidade de um país dividido ao meio (cerca de 16 milhões para cerca de 17 milhões) entre os que queriam ficar e os que querem sair, entre os mais velhos e os mais novos, entre as grandes cidades e os que se sentem deixados para trás, abrindo profundas fracturas sociais numa decisão que não pode ser corrigida amanhã por novas eleições, mas que compromete o país para o futuro previsível. May ignorou o caminho de um “soft Brexit” capaz de voltar a unir os britânicos em torno de uma solução mais consensual. Pelo contrário, radicalizou a solução. “O ‘Brexit’ não pode continuar a ser propriedade dos tories”, escreve o jornal.
É visível, entretanto, um crescente alarme em relação a uma saída sem acordo, que parecia afastada na semana passada – seria uma fuga para a frente motivada pelo desespero.
3. Em Bruxelas, a tão elogiada “unidade inquebrantável” dos restantes 27 começa a revelar as suas brechas. O Conselho Europeu de quinta e sexta-feira dividiu-se, pelo menos, em duas linhas distintas: a dos que queriam encostar o Reino Unido (ainda mais) à parede, manifestando uma posição de intransigência, liderada por Macron; a outra, na qual o primeiro-ministro português teve um papel relevante, quis evitar que se fechasse definitivamente a porta a May. Houve ainda uma outra “facção” uninominal, da chanceler alemã, cuja tranquilidade pode ter as mais diversas interpretações. Mesmo assim, o seu conselho foi avisado: não estreitar demasiado as opções, incluindo a possibilidade de uma adiamento longo, desde que o Reino Unido estivesse disponível para participar nas eleições europeias.
Os negociadores europeus podem dizer, com alguma razão, que foram flexíveis às exigências britânicas, incluindo na formulação do backstop irlandês. Que foi o Reino Unido que escolheu a data para accionar o Artigo 50.º do Tratado. Que foi o Governo britânico que optou por um “hard Brexit”, quando pôs de parte qualquer hipótese de vir a ficar na União Aduaneira. Mas há uma intenção inicial no comportamento da União que está longe de ser pacífica: mostrar aos que ficam como é extremamente difícil sair e como o preço a pagar se pode tornar incomportável. A pressão resultou e pode estar na base da tão apregoada “unidade”. A defesa da União Europeia como um bem precioso que é preciso preservar até pode justificar esta preocupação. Mas o princípio, em si próprio, é profundamente errado, porque não leva em conta a questão essencial da escolha livre de cada país sobre o seu próprio destino. Mesmo que essa escolha pareça incompreensível, como a que os britânicos resolveram fazer. Não lhes foi dita a verdade? Pois não. Mas é assim que funcionam as democracias e ainda não se inventou uma forma de funcionarem melhor.
4. Claro que os países europeus têm interesses que são absolutamente legítimos. No longo prazo, é difícil subestimar a saída de um país com a dimensão e a capacidade de influência do Reino Unido, quando a Europa luta pela sobrevivência num mundo de grandes potências em que os argumentos de poder se sobrepõem cada vez mais à lei internacional. No curto prazo, têm o dever de se preocupar com os efeitos económicos da saída da quinta economia do mundo, que vai afectar directamente as suas empresas e os seus cidadãos, tentando minimizar os danos. Mas não podem transformar o “Brexit” num caso de punição. Nem é preciso.