O movimento 5.7 e o abalo na política da cristaleira
A razão porque admiro genuinamente o percurso de Miguel Morgado resume-se numa frase: ele quer alguma coisa para o país.
Por política da cristaleira eu entendo o estado de espírito dominante da política portuguesa pelo menos desde o final do ímpeto reformista dos governos de Cavaco Silva. Ela consiste no seguinte: limitar a política a uma gestão do dia-a-dia, abanando o mínimo possível as estruturas do país, e fazendo da imobilidade uma virtude. Tal como a avozinha que não quer que se toque na cristaleira, não vá partir-se alguma coisa, mesmo que o cristal fique a ganhar pó e ninguém dele faça uso, também a política da cristaleira alimenta o medo do futuro, trava todo o desejo de arriscar, vive do temor de que aquilo que aí vem seja sempre pior do que aquilo que já aí está – uma postura extremamente conservadora que, de forma paradoxal, tem sido o grande mantra da outrora revolucionária esquerda portuguesa.
O seu lema poderia ser: “Não mexas que se parte!” É verdade que a política da cristaleira sofreu um forte abalo com a vinda da troika. Mas não é por acaso que essa vinda foi sempre tratada pela esquerda Atlantis como uma imposição do exterior, desligada de qualquer necessidade do país. Mal a troika saiu, a normalidade foi de imediato reposta. A chamada “geringonça” é o maior monumento à política da cristaleira que até hoje a democracia portuguesa avistou: pela primeira vez na história, toda a esquerda se uniu para impor uma política de reversões e reposições, na medida em que era urgente regressar ao passado, e vender a narrativa do memorando do entendimento como “pacto de agressão” (a expressão favorita do PCP). Segundo essa triste narrativa, que conseguiu convencer muita gente, a austeridade foi praticada por sadismo (da Europa) e por masoquismo (do governo PSD-CDS), mas nunca por causa de erros catastróficos da governação ou do caminho seguido pelo país nas duas décadas anteriores.
Desde 2015, aquilo que se tem discutido é invariavelmente o passado – a luta dos professores pela recuperação do tempo de serviço é um bom exemplo –, já que sobre o futuro ninguém parece ter nada a dizer. É por isso que o recém-criado Movimento 5.7, que este sábado apresenta o seu manifesto (“Nascidos a 5 de Julho”), é para mim tão interessante. Eu conheço o Miguel Morgado há alguns anos, gosto bastante dele, e parece-me, de longe, o melhor valor surgido no PSD nos últimos tempos. Mas a razão porque admiro genuinamente o seu percurso resume-se numa frase: ele quer alguma coisa para o país. Querer alguma coisa para o país pode parecer pouco, mais é muito mais do que a totalidade do espectro político português com representação na Assembleia da República tem neste momento para oferecer.
Eu acompanho naturalmente o desejo de um movimento de direita que tenha ideias diferentes a propor, e que esteja disposto a combater a hegemonia cultural de uma esquerda que há demasiado tempo se esforça por instalar um pensamento único no país (ao qual boa parte do PSD também adere). Mas aquilo que mais me agrada no manifesto é mesmo a coragem de enfrentar a política da cristaleira, tantas vezes alimentada pelos próprios jornais. Também aqui é preciso mudar alguma coisa. Aquilo que tenho lido sobre o 5.7 é sempre escrito de uma perspectiva partidária – quem faz parte?, de que partidos vêm?, quem querem tramar? Só falta mesmo o mais importante: saber o que o Movimento 5.7 tem para nos oferecer e de que forma pode ser ele aproveitado para mudar um país que anda há 20 anos a arrastar-se na mediocridade política, social e económica.