Impostos na UE: Unanimidade? Não, obrigada!
É precisa mais coordenação fiscal na UE, não para aumentar a carga sobre as classes médias e as pequenas empresas, mas para garantir que os indivíduos mais ricos e as empresas maiores paguem a sua fatia.
A razão pela qual precisamos de coordenação fiscal ao nível europeu é simples: a livre circulação de pessoas, bens e capital é decidida ao nível europeu. Querer uma sem a outra é defender uma política europeia Frankenstein.
Vamos por partes. Primeiro, a vantagem da livre circulação é aproveitar oportunidades de negócio. Se em Montemor não houver um centro de explicações e em Évora houver meia dúzia, uma pessoa que queira investir nesse negócio fá-lo em Montemor, o que cria valor para ela, porque opera num mercado menos congestionado, e para as famílias de Montemor, que podem oferecer às suas crianças apoio escolar. Sem livre circulação, o centro de explicações ficava em Évora, e a economia portuguesa era mais pobre. O mercado único europeu é mais ou menos isto, mas à escala dos países e não dos municípios.
Agora, a fiscalidade. Imagine que em Portugal o IRS e o IRC eram decididos pelos municípios. As câmaras municipais iam baixar os impostos para atrair residentes e empresas. Nem todos os residentes e empresas têm a mesma facilidade de mover-se entre localidades. Há quem tenha razões pessoais ou profissionais para viver num lugar. Mas, para muitos, atravessar a fronteira entre dois municípios para poupar algumas centenas de euros em impostos seria um excelente negócio. O café do bairro certamente não consegue ter sede fiscal no município ao lado. Mas se for uma cadeia de cafés já consegue fazer otimização fiscal, colocando a sede num município fiscalmente mais favorável. Moral da história: ganha o município que a atrai, ganham as donas da cadeia de cafés, perde coletivamente o país pela diminuição da receita fiscal. Concorrência fiscal é redistribuição ao contrário: as pequenas empresas e os indivíduos menos qualificados pagam mais, para compensar o que não pagam as pessoas e empresas mais móveis (ler: mais ricas e mais sofisticadas), que conseguem aproveitar as diferenças fiscais para pagar menos impostos. Mas não é só isso. Se o tal centro de explicações optar por Évora devido a um regime fiscal mais favorável, as famílias de Montemor perdem (e as de Évora não ganham grande coisa, porque já têm centros de explicação). Empresas que correm atrás de benefícios fiscais e não de oportunidades de negócio geram menos valor para a sociedade.
É precisamente devido à liberdade de circulação no interior dos países que em Portugal, mas não só, os governos locais têm poderes limitados para cobrar impostos sobre o rendimento. No conjunto da OCDE, os impostos sobre o rendimento de pessoas coletivas e individuais cobrados ao nível local representam em média 2% do PIB e os cobrados pelos governos centrais ascendem a 8.5% do PIB. Por estes lados, temos a derrama, que permite ao município ir buscar até 1.5% do lucro das empresas nele localizadas. E a participação variável no IRS, que permite a cada município dispor de 5% do IRS pago pelos residentes. A Irlanda, conhecida por utilizar estratégias agressivas para sacar receita fiscal aos seus congéneres europeus, percebe melhor do que ninguém os efeitos nefastos da concorrência fiscal e inibe os seus municípios de entrar na festa: na Irlanda, não há impostos locais sobre o rendimento.
É precisa mais coordenação fiscal na UE, não para aumentar a carga sobre as classes médias e as pequenas empresas, mas para garantir que os indivíduos mais ricos e as empresas maiores paguem a sua fatia. No Parlamento, o PS e o PAN estiveram isolados na defesa do abandono da unanimidade em matérias fiscais na UE. Eu percebo a posição dos partidos à esquerda, que nunca defenderam o mercado único. Mas a do PSD é um Frankenstein. Para justificar a sua posição, Paulo Rangel escreveu um texto no PÚBLICO em que se afirma a favor de harmonização fiscal em IRC, eventualmente por maioria qualificada; a favor de novos impostos, por exemplo sobre plataformas digitais, desde que criados unanimemente pelo conjunto dos países e a receita consignada à UE; e não admite dar à UE o poder de lançar impostos próprios. A argumentação faz pouco sentido do ponto de vista económico; essencialmente, um imposto europeu ou impostos nacionais uniformes cujas receitas revertam para a União são a mesma coisa. O imposto sobre os gigantes digitais não tem de ser “novo”; passa simplesmente por uma alteração à forma como se aplica o IRC, por exemplo, cobrando impostos em função da receita gerada pelas plataformas em cada país. Não é muito diferente da proposta da Comissão para que as multinacionais paguem IRC em cada país em função da massa salarial ou das vendas, em vez do lucro declarado. Esta “Common Consolidated Corporate Tax Base” anda por aí desde 2011 e ninguém acenou com o fantasma do “novo imposto” ou do “imposto europeu”.
Com a resistência que se prevê ao abandono da unanimidade, podemos sempre avançar entre os países interessados, como propõe o Manifesto para a Democratização da Europa, proposto, entre outros, por Thomas Piketty. O mundo está cheio de exemplos de coordenação entre sub-conjuntos de países – a UE, aliás, é um deles. O Acordo de Paris para as alterações climáticas entrou em vigor quando o número de países signatários representava 55% do total de emissões de gases produtores do efeito de estufa. Uma concertação parcial, desde que abarque uma parte substancial da economia da União, é melhor do que nada. Haverá comportamentos fiscais agressivos de quem fica de fora, que as grandes empresas vão aproveitar, mas não vai ser o regabofe que temos hoje.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico