A série The OA continua indescritível — e nos próximos dias vai dar trabalho no Netflix
Sem spoilers, o que liga estes novos episódios à cultura Netflix? A segunda temporada é um precipício entre o absurdo e o fascinante. “Não compreendo como é que a nossa história pode ser [vista como] doida mas Capitão Marvel não é”, perguntam-se os criadores.
Afinal, Barack Obama nunca foi Presidente dos EUA, da mesma maneira como a heroína desta história deixou de ser cega. À segunda temporada, The OA continua indescritível e continua a ser uma caixa-mistério no Netflix. No meio de tanta, talvez demasiada televisão, é um convite à interrogação e, tal como algumas das séries passadas que mais dividiram os seus espectadores sempre passionais, à frustração ou constante procura. Às vezes o que importa não é o destino mas sim a viagem. E o segredo, pede o Netflix, o segredo sobre actores convidados surpresa e revezes da intriga.
Brit Marling é uma voz que o PÚBLICO ouviu no Inverno de 2016, a tentar explicar uma série que desafia a explicação e que esta sexta-feira chega ao mundo com um polvo gigante, magnatas de Silicon Valley e uma casa de loucos saída da cabeça da própria Marling e Zal Batmanglij. Ela é actriz, argumentista de The OA, o “Original Angel”, e a grande descoberta da série foi que o uso de uma dança permitia a viagem entre dimensões. A linguagem das artes performativas e de palco ao serviço da ficção científica e da fantasia.
Uma transcendência movida pela cinética, uma história que afinal era de como o corpo somatiza as experiências de violência. Ou simplesmente sobre uma rapariga que acorda a ver depois de anos de cegueira e que recorda um longo sequestro em grupo por um cientista obcecado pelas experiências de quase morte dos seus reféns. Ela sabe “os movimentos” e salva adolescentes de um tiroteio numa escola, entre outros temas de actualidade diluídos numa intriga complexa que parece tornar The OA numa série feita à medida das potencialidades do Netflix — ou de outros serviços de streaming.
Encontrou nele um saco sem fundo de verbas para financiar projectos que cobrem quase todo o espectro (vai dos filmes adolescentes e documentários criminais às séries de autor) e que visam enriquecer um catálogo. Mas o Netflix também lhe deu o lançamento simultâneo em mais de 130 países e a possibilidade de mostrar todos os episódios de uma vez, que depois ficam disponíveis para todas as revisões possíveis e desejáveis. “A narrativa mítica subjacente que Silicon Valley conta a si mesma é que o melhor risco, a façanha que mais vale a pena, é a que à primeira vista parece o risco mais excêntrico. Por isso quando levaram essa mentalidade de empresas de tecnologia para Hollywood, foi um volte-face total”, diz Brit Marling à revista Atlantic (onde em 2017 assinou um texto sobre como foi assediada por Harvey Weinstein e sobre a cultura de poder na indústria).
Sim, o canal premium Showtime (e em Portugal o TV Séries) deu espaço a algumas das horas de televisão mais surreais da história com Twin Peaks: O Regresso, mas esse era um trabalho com a marca de culto que é David Lynch. The OA tem zero pedigree salvo para quem se debruce sobre o trabalho passado de Marling e Batmanglij, como os filmes Sound of My Voice ou The East, e com quem as conversas não são sobre como a personagem A se desloca até ao ponto B, mas sobre os espelhos negros que reflectem a nossa vida no espaço público e privado (os smartphones), o sonho americano em colapso, cinema checo, activismo, tribos Masai ou geografias dissonantes. Tudo está embebido na série.
O puzzle The OA também intriga Batmanglij, que realiza vários dos episódios (fê-lo ainda em Wayward Pines, a série onde conheceu os irmãos Duffer que acabariam, como ele, a fazer a sua própria série sobre dimensões alternativas, uma tal de Stranger Things, para o Netflix também em 2016). Mas por outros motivos. “Muitas pessoas apelidam o nosso trabalho como New Age. Mas por alguma razão, não apelidam assim o trabalho do [criador de inúmeros super-heróis para a Marvel] Stan Lee. Não compreendo como é que a nossa história pode ser tão doida mas Capitão Marvel não é. Muitas das ideias que parecem bizarras em The OA vão ser só normalização à medida que os anos passam”, disse à revista Time.
“Isso só nos assusta porque somos coagidos por vergonha a aceitar que a única inteligência de valor é a de uma folha de cálculo no Excel”, completa Marling, num movimento cinético de Q.I. emocional. Odiados ou amados pela crítica — “a série mais profundamente tonta ou a série mais tonta na sua profundidade da TV”, diz a Hollywood Reporter, “uma alucinação gloriosa e ridícula” para o Vulture — e pelos espectadores, professam a honestidade e não entram na moda da ironia.
E, no fim, nada de muito concreto se disse sobre a segunda temporada de The OA, cujos oito episódios estão a partir desta sexta-feira no Netflix. Há uma rapariga desaparecida que faz The OA parecer um policial noir, e muitos dos rostos da primeira temporada estão de volta, incluindo o da cantora Sharon Van Etten, que retoma o seu papel — ou será outro papel? É um mundo diferente, em que há outro Presidente, mas em que os sobreviventes do tiroteio dão ao espectador o direito de episódios mais convencionais num conjunto de oito capítulos (a série não foi integralmente fornecida aos jornalistas) que tem mais contacto com a “realidade” ou a “nossa realidade” ou a “realidade reconhecível” mas que continua a ser o seu próprio monstro, periclitante entre o absurdo e o fascinante. A realidade, especialmente a actual, pode ser sobrevalorizada.