Regresso à memória de Celeste com os (bons) amigos de Gaspar

Celeste Rodrigues vai renascer através de muitos dos fados que moldou com a sua voz ao longo de 73 anos de dedicação fadista.

Esta noite, vamos ouvir Celeste Rodrigues. Lembrá-la através de várias vozes, ouvindo os seus fados numa “reunião de amigos, na plateia e no palco”, como ela mesma chamou ao espectáculo de 11 de Maio de 2018 no Tivoli, mal sabia que havia de ser o último. Logo ela, que, poucos anos antes dizia numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, no PÚBLICO: “Nunca pensei chegar aos 91 anos. Espero chegar aos 100, já agora. E assim. Em pé, a poder falar, andar, a poder pensar, entender.” Pois foi assim, de pé e a poder pensar, que nos disse adeus.

Como compensar tal perda? Pela memória viva. Que no caso de Celeste passa pela música. O facto de Gaspar Varela, seu bisneto, ter tocado de forma vibrante a guitarra que tantas vezes a acompanhou num Lux de casa cheia, na noite em que Celeste Rodrigues faria 96 anos (nasceu no Fundão, em 14 de Março de 1923), foi já uma emotiva experiência. A lembrar, glosando um célebre fado da irmã Amália, que tudo em nosso redor nos diz que ela está sempre connosco.

O certo é que hoje, numa noite que estava reservada para ela cantar (o espectáculo foi marcado antes da sua morte, no ciclo O Fado no Cais), Celeste Rodrigues vai renascer através de muitos dos fados que moldou com a sua voz ao longo de 73 anos no fado, longevidade que nenhum outro fadista atingiu (e que só encontrará paralelo na belíssima carreira de Joel Pina, 99 anos feitos em Fevereiro e 70 desde que se profissionalizou como músico, na viola-baixo).

No Grande Auditório do CCB estarão fadistas que, amigos ou próximos de Celeste, também o são do jovem músico seu bisneto, Gaspar Varela, que mantém acesa a chama do fado no futuro da família. Além dele, estarão em Belém os músicos Pedro de Castro (também na guitarra portuguesa), André Ramos (viola de fado), Francisco Gaspar (viola-baixo); e os fadistas Ana Sofia Varela, Camané, Duarte, Fábia Rebordão, Helder Moutinho, Jorge Fernando, Katia Guerreiro, Mísia, Pedro Moutinho, Ricardo Ribeiro, Sara Correia e Teresinha Landeiro. A encenação é de Diogo Varela Silva, neto de Celeste e pai de Gaspar, realizador de cinema (a propósito: quando verá a luz do dia o filme Alfama em Si, que ele rodou ainda com Celeste?)

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Celeste Rodrigues ENRIC VIVES-RUBIO

Voltando a Gaspar, e à sua entusiasmante prestação no Lux, onde nem os nervos travaram a destreza e vivacidade com que tocou mesmo os temas mais difíceis (como o célebre e temível Corridinho do mestre Zé), estiveram com ele nessa noite, além dos muitos músicos que ali foram para o ouvir, dois convidados: Ana Moura, na voz (e que bem ali soou Desfado, na sua aparente, mas só aparente, desafio ao cânone fadista) e Ricardo Toscano no saxofone. Jazz e guitarra, jazz e fado, outra união improvável; mas que já foi testada noutro encontro, há meio século. Nem de propósito, está agora nos escaparates das lojas o disco Encontro, que juntou Amália Rodrigues (irmã mais velha de Celeste) e o saxofonista norte-americano Don Byas.

Reeditado na integral que Frederico Santiago tem vindo a preparar, com dedicação, para a Valentim de Carvalho (que a vai editando aos poucos), o disco Encontro Amália & Don Byas já tivera uma primeira edição em CD, mas só agora surge remasterizado (por Nelson Carvalho, a partir da gravação original feita por Hugo Ribeiro) e com o necessário enquadramento, quer musical quer histórico. Com Amália e Don Byas esteve ali um naipe de músicos notáveis: Raul Nery e Fontes Rocha, na guitarra portuguesa; Júlio Gomes na viola de fado; e Joel Pina, na viola-baixo. Foi uma sessão rápida e, para muitos, estranha, aquela que registou tal encontro no dia 11 de Maio de 1968. “A sessão de estúdio” escreve João Moreira dos Santos no extenso texto que acompanha o disco, terá “sido breve, atendendo a que cada uma das 12 peças musicais gravadas foi produto de um só take.” Ou seja: gravadas à primeira, sem repetição nem ensaios, com Amália pouco propensa ao jazz e Byas ainda a tactear as voltas do fado.

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Capa da reedição de Encontro

Mas isto, que só foi possível pelo empenho de Luiz Villas-Boas (que levou Byas a Amália) e poderia ter sido um falhanço, acabou por ficar na história da discografia amaliana por boas razões. Ela mesmo admitiu, em 1977, numa entrevista à revista Música & Som, que apesar de o saxofone ali parecer “uma coisa insólita”, a sua voz estava num momento alto: “Eu, a cantar, dificilmente cantarei melhor do que aquilo”, afirmou então Amália a Bernardo Brito e Cunha. Quem for ao CCB recordar Celeste e ouvir esta Amália, terá, não um, mas dois encontros com a parte mais valiosa da herança Rebordão Rodrigues: uma obra musical que há-de perdurar.

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