Será que quem diz aos bancos o que é necessário vender é parte interessada na compra?
Como pode a BlackRock estar envolvida nos testes de stress à banca europeia quando a própria empresa aparece no mercado como potencial compradora do crédito malparado dessa mesma banca?
Em 2018, numa série de cinco cartas, Danièle Nouy, a antiga responsável do Mecanismo Único de Supervisão (SSM) – mecanismo integrado no BCE –, respondeu a perguntas de um deputado do parlamento alemão (Bundestag) encaminhadas pelo respectivo presidente, não outro senão Wolfgang Schäuble.
Quem supervisiona os supervisores?
Antes de comentar essa troca de correspondência é oportuno ter presente que o BCE actua também nas funções de supervisão de forma independente.
Com a supervisão única do sistema bancário, que entrou em funcionamento em Novembro de 2014, a supervisão dos 119 bancos ditos “significativos” da Zona Euro (tipicamente os maiores de cada Estado-membro) passou para o SSM, mantendo as autoridades nacionais a supervisão de bancos não significativos, i.e., de menor dimensão. Existem cerca de 3500 bancos não significativos na Zona Euro.
Em relação às decisões do SSM sobre bancos significativos, o controlo democrático da actuação do SSM cabe ao Parlamento Europeu, algo que se afigura inconsistente, uma vez que os custos dessas decisões são com frequência suportados pelos orçamentos nacionais bem como por cidadãos dos Estados-membros (com repercussões nos orçamentos nacionais). Por conseguinte, afigura-se que deveria caber a cada parlamento nacional o escrutínio da acção do SSM que tivesse repercussão no orçamento do respectivo Estado-membro.
Mas afinal quem paga a conta nada tem a dizer?
Sobre esta questão, o prestigiado serviço de investigação do Bundestag sustenta que os parlamentos nacionais podem requerer por escrito ao BCE o esclarecimento de questões e que o BCE “pode”, se entender, responder.
O Tribunal de Contas Europeu também está limitado na supervisão da actuação do BCE (e do SSM, em particular) a questões de eficiência mas não de substância das decisões.
Serão muito poucas as questões de membros de parlamentos nacionais ao SSM
Surpreendentemente, há apenas um total de seis respostas do SSM a questões escritas provenientes de parlamentos nacionais desde que o SSM foi criado em 2013, cinco das quais dirigidas precisamente a Wolfgang Schäuble durante 2018, e a sexta dirigida a dois deputados irlandeses, a 8 de Novembro de 2017.
É muito positivo que o SSM responda a questões colocadas pelos representantes nacionais porque, como se referiu acima, parece que não está obrigado a responder. Assim, a troca de correspondência com Wolfgang Schäuble cria um precedente importante na prática do SSM, reforçando a transparência dessa instituição, precedente que os parlamentos nacionais dos Estados-membros devem saber aproveitar.
Empresas privadas, nomeadamente a BlackRock americana, estiveram envolvidas nos testes de stress a bancos europeus
A troca de correspondência entre Wolfgang Schäuble e Danièle Nouy versa diversas questões, desde a subcontratação de empresas externas para a realização de testes de stress, os custos dessas consultadorias, potenciais conflitos de interesse nesse processo, a forma como os testes de stress foram implementados ao sistema bancário italiano e os critérios que levam o BCE a declarar um banco em “situação ou risco de falência”.
As respostas, de uma instituição que dá os seus primeiros passos, são elucidativas.
Dormindo com o “inimigo”?
Por exemplo, em 2014, o SSM fez um ajuste directo (sem concurso) de 24 milhões de euros à Oliver Wyman, por “razões de extrema urgência”, para efeitos da realização dos testes de stress à banca europeia.
Note-se que a Oliver Wyman assessorou em diversos processos o Ministério das Finanças e o Banco de Portugal. Em particular, a Oliver Wyman aconselhou o governo português no processo de recapitalização do Banif de 2012 e no processo de venda deste banco nos anos subsequentes. Também assessorou o Banco de Portugal no processo de resolução do Banif em 2015. É, no mínimo, de realçar que a empresa que prestou serviços de assessoria na definição dos níveis de capital do Banif, no âmbito do teste de stress europeu, é a mesma empresa que assessorou a aplicação da medida de resolução ao mesmo banco.
Em 2016, o SSM recorreu ao serviço de assessoria da BlackRock, desta feita por concurso público. Trata-se da maior empresa de gestão de activos financeiros do mundo, com cerca de 4,7 biliões de euros de activos sob gestão, uma empresa do chamado “shadow banking”, sector de intermediação financeira que concorre em parte com a banca mas que, ao contrário da banca, é um sector pouco regulado ou supervisionado pelas autoridades públicas.
A BlackRock é um dos actores no mercado de crédito malparado, estando interessada em adquirir este tipo de crédito, com desconto, a bancos que são obrigados pelo BCE a reduzir os níveis de crédito malparado. Por exemplo, a BlackRock foi um dos intermediários financeiros que notificou em 2017 o governo português do interesse em adquirir o crédito malparado da banca portuguesa.
Como pode a BlackRock estar envolvida nos testes de stress à banca europeia, testes que definem as necessidades de capital da banca, quando a própria empresa aparece no mercado como potencial compradora do crédito malparado dessa mesma banca? Não resultará este duplo papel num conflito de interesses? Esta é uma das questões pertinentes suscitadas pelo Bundestag.
Em resposta à crítica implícita das missivas de Schäuble, Danièle Nouy argumenta que essas empresas externas estão contratualmente obrigadas a assegurar a confidencialidade dos dados obtidos na assessoria ao BCE e que, por conseguinte, não se colocaria a questão de conflitos de interesse. Mas também informou que o Conselho do BCE deliberou contratar mais pessoal de forma a reduzir progressivamente as necessidades de consultores externos.
Paradoxalmente, o SSM, ao obrigar os bancos supervisionados a venderem crédito malparado à pressa e com grandes descontos, prejudica os bancos que supervisiona, causando prejuízos, e beneficia os intermediários financeiros não regulados (“shadow banks”).
A medida de resolução ou a medida de liquidação é aplicada quando o BCE quiser
O BCE também indica numa dessas cartas que não há um critério objectivo que determine uma declaração de “situação ou risco de insolvência”, declaração essa que, de acordo com a directiva europeia sobre resolução bancária, automaticamente implica a aplicação de uma medida de resolução ou de liquidação de um banco.
Essa determinação baseia-se, segundo o BCE, numa avaliação “global” (“comprehensive”), isto é, caso a caso... com a discricionariedade que isso pode envolver.
Por último, note-se ainda que Danièle Nouy informa Wolfgang Schäuble que a directiva europeia sobre recuperação e resolução bancária (art. 59) não permite a partilha com os parlamentos de informação específica relativa a bancos em resposta a questões suscitadas por estes, algo que é surpreendente.
Em suma, seria bom que as autoridades europeias revisitassem estes e outros aspectos da União Bancária.