“Tive uma vida fantástica sendo um inconformado, tentando descobrir aquilo de que o corpo é capaz”

Complexo, sensível, delicado, irónico. O bailarino, coreógrafo e pensador Steve Paxton confunde-se com o seu trabalho. Uma exposição em Lisboa percorre até Julho a sua obra. Seis décadas em que tem vindo a encontrar “pequenos momentos de graça” na mudança. Assim o deixem continuar a olhar pela janela da cozinha.

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Veio a Portugal abrir o ciclo de espectáculos, conferências e workshops que a Culturgest lhe dedica até Julho e que tem por âncora uma exposição que desenha um percurso pela sua obra nuno ferreira santos

Veio a Portugal para abrir o ciclo de espectáculos, conferências e workshops que a Culturgest lhe dedica até meados de Julho e que tem por âncora Esboços de Técnicas Interiores, exposição que desenha um ambicioso percurso pela sua obra, desafiando o espectador a dançar, a experimentar. E, como sempre, Steve Paxton impressiona em toda a sua clareza de pensamento e de discurso, em toda a sua perspicácia, por mais que saibamos de antemão que a sua cabeça não pára (nunca parou), nem mesmo quando naquele corpo de 1939, como costuma dizer, já lhe faz falta a energia dos 30 anos.

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Complexo, sensível, delicado, o trabalho de Paxton parece procurar os “pequenos momentos de graça”, assim lhes chama, em que tudo pode mudar, ainda que subtilmente nuno ferreira santos

Bailarino, coreógrafo e improvisador, este norte-americano, que é um dos nomes fundamentais da dança pós-moderna e contemporânea, passou as últimas seis décadas a pensar e a escrever sobre o movimento, boa parte delas a partir de uma comunidade de artistas no Norte do Vermont, onde tem uma casa com uma grande janela virada a sul na cozinha, de onde se vê uma colina suave com uma árvore no topo. “Acordo todos os dias e vou àquela janela. Sinto as moléculas daquela colina a adaptarem-se. Há um trilião de mudanças a acontecer no meu quintal ao mesmo tempo”, contou durante a conferência que deu no passado domingo. “A evolução também acontece em micromomentos. Não somos o que costumávamos ser nem vamos permanecer iguais ao que somos hoje. E isto pode ser assustador.”

Esboços de Técnicas Interiores, exposição comissariada pelos bailarinos João Fiadeiro e Romain Bigé, permite entrar no universo deste pensador e performer construindo a partir das duas técnicas que criou — Contacto Improvisação (que se desenvolve na interacção dos corpos, do seu peso, da sua energia) e Material para a Coluna (que se concentra nos músculos que suportam a coluna vertebral e nas ligações que ela mantém com a pélvis ou a cabeça dando origem a formas perfeitas) — e de algumas das suas peças (Satisfyin Lover ou Goldberg Variations) uma grelha de leitura da sua obra. Complexo, sensível, delicado, o trabalho de Paxton parece procurar os “pequenos momentos de graça”, assim lhes chama, em que tudo pode mudar, ainda que subtilmente.

“Estou disposto a eliminar a palavra ‘dança’ da linguagem, mas não sei como ficaríamos sem a palavra ‘movimento’”, disse no domingo à tarde este homem de 80 anos que ao Ípsilon, em entrevista dias antes, garantia estar pronto para o que vem a seguir, “seja lá o que for”.

Tem passado a sua vida a dançar, a improvisar, a escrever sobre o corpo e o movimento, ensinando-nos que a dança existe em várias formas e que pode ser encontrada no mais natural dos gestos. É estranho ver agora esse trabalho convertido numa exposição que, apesar das experiências que propõe, tem um peso formal?
Acho que seria estranho para qualquer pessoa, mas é provavelmente muito útil. É natural, quando envelhecemos, começarmos a pensar no que aconteceu na nossa vida. Não ter de o fazer sozinho, poder fazê-lo com outros e discuti-lo é bom. Factualmente, o João [Fiadeiro] e o Romain [Bigé] são capazes de saber mais sobre mim do que eu. Eles sabem em que ano aconteceu o quê... Ver a minha vida representada assim, a minha vida dançada, acaba por ser muito interessante.

Não é assustador, de certa forma?
Não, não é. É surreal, mas, por outro lado, vi a maioria destes vídeos, eles fazem parte da minha história... Eu também escrevo e, por isso, sei que, se queremos expressar os nossos sentimentos, os nossos pensamentos, temos de o fazer dentro de uma ordem qualquer. É a mesma coisa, há que obedecer a um vocabulário. Um curador faz isso — cria uma história para representar uma coisa. Tenho noção de que há convenções, uma estrutura que pode não estar directamente relacionada com o que aconteceu, mas que tem uma ligação com a maneira como contamos uma história sobre o que aconteceu.

Tiveram discussões sobre o que eles queriam mostrar?
Bom, nós discutimos bem os três. Estamos habituados. Podia ter havido, mas em relação a esta exposição não me lembro de nenhuma.

Passou boa parte da sua vida a propor coisas novas ao movimento e da maneira mais aberta possível. Como é que vê hoje a forma como as pessoas se apropriaram das técnicas que criou, sobretudo o Contacto Improvisação? Por vezes, nessa apropriação, parece haver uma cristalização que contraria o propósito inicial...
Assume-se sempre que, ao usarmos a palavra “improvisação”, estamos a falar de liberdade e não de estrutura. Como poderia ser assim? Como poderíamos abdicar da estrutura? A partir do momento em que temos dois elementos, temos uma estrutura; se temos 15 elementos, temos mais estrutura. Para mim, trata-se de perceber de onde vem essa estrutura, como é que ela estabelece relações. Não há [na dança] isso a que as pessoas chamam liberdade porque há sempre condições, limitações. Talvez a queda de um precipício possa ser um momento de liberdade, mas nunca correu bem para as pessoas que o experimentaram...

No começo dos anos 1960, com a minha primeira peça para o Judson [Dance Theatre], trabalhei o andar e continuei a fazer pesquisa com o movimento pedestre nos dez anos seguintes... Estava a tentar encontrar algo antigo, talvez fundamental, no corpo, e o andar foi a primeira coisa em que pensei. É certamente antigo, é certamente básico, mas acabou por se tornar interessante de estudar.

Satisfyin Lover [1967] era uma peça sobre o caminhar, o estar de pé, o sentar. Também é sobre a performance. Se te disserem para te levantares e contares a tua história perante o público — tu conheces a tua história e na assistência estão, provavelmente, os teus amigos —, verás que o lado da performance impõe um sentimento diferente a essa história e ao acto de a contar. Talvez o contador de histórias, o bailarino, esteja a tentar trazer para a sua interpretação a reacção do público àquilo que está a fazer. Ser capaz de realçar a história, de preencher eventuais lacunas para que pareça completa, enquanto se faz uma tentativa, talvez automática, de ler a mente da audiência... É isso que faz o performer – tenta ler a mente de cem pessoas ao mesmo tempo para descobrir como estão a reagir ao que ele propõe. Se o contador de histórias não está a fazer nada — sublinho, nada —, se o seu trabalho em determinada peça é só atravessar o palco a andar, está tudo tão reduzido que não tens muitas oportunidades de ler a tua audiência e ela não tem muitas razões para se sentir confundida.

Continuou a fazer esse jogo de ler a mente do público ao longo dos anos ou a sua relação com o palco, com a plateia, mudou?
Mudou muito. Comecei por ter uma relação muito formal com o espectador. Quando comecei a dançar, tinha um pânico incrível do palco, das apresentações...

Como é que o ultrapassou?
Forçando-me a dançar, muito dolorosamente. Quando me vejo nas fotografias do começo, pareço paralisado [começa a mover-se como se os seus gestos fossem mecanizados, rígidos]...

Como uma escultura...
Como uma escultura romana de alguém com uma doença terrível... Pareço estar em sofrimento e estou mesmo. Acho que o público se podia aperceber desse desconforto. A sensação que eu tinha era a daquele jogo de que falámos há pouco ao contrário, como se as cem pessoas estivessem a ler a minha mente, algo que é muito poderoso e inibidor. Passado algum tempo, descontraí-me e tornei-me um performer que até falava com o público.

Como é que se deu essa transformação?
Passei a controlar o meu próprio trabalho. Não estava a tentar interpretar o trabalho de outros, que é outro nível de formalidade. Quando passei às minhas peças e, sobretudo, a improvisar, a conversa com o público tornou-se um hábito. Às vezes era precisamente por aí que começava a sessão. A partir da conversa começava a mexer-me e a música podia aparecer ou não... Tornou-se natural e apercebi-me do poder de “ligar” e “desligar” a performance, que é algo que o público compreende e respeita.

Esta exposição prepara o visitante para o seu trabalho e, mais do que isso, quer levá-lo a experimentar, o que pode ser uma maneira de chegar a algo que é por vezes muito complicado de explicar, de traduzir por palavras...
Acho que o meu trabalho é fácil de perceber... Sei que tem várias camadas de humor e que algumas podem não ser perceptíveis à partida ou por toda a gente, mas isso é porque o meu humor é muito lento... Há uma peça aqui, que se chama Flat [o bailarino esloveno Jurij Konjar dançou-a no passado sábado, na Culturgest], que é uma dança lenta, com poucos elementos, com alguns movimentos facilmente reconhecíveis. A piada aqui é que Flat é a minha ideia de um homem a fazer striptease, mas é tão lento e tão disfarçado em pós-modernismos que o striptease não é a primeira coisa que vem à cabeça. É uma piada e, ao mesmo tempo, um exercício estrutural.

Tem vindo a fazer as mesmas perguntas a si mesmo ao longo destas décadas: onde começa a dança? Onde acaba? Como é que se sabe que se está a improvisar? O que é o movimento consciente? Imagino que não, mas tenho de perguntar: já encontrou algumas respostas satisfatórias?
[Risos] Felizmente, não. Não creio que tenha qualificações suficientes para responder. Essas perguntas tornaram o meu trabalho possível. O que é a performance? É algo muito abstracto no ser humano e, ao mesmo tempo, muito natural. Quantas crianças dançam em frente da mãe e do pai, brincando? É o mesmo quando se tem 20 anos e se está a tentar dançar num musical ou quando se tem a minha idade e ainda falamos perante uma plateia... A pergunta é sempre a mesma, o impulso é sempre o mesmo.

Para a maioria das pessoas, o movimento permanece um paradoxo inultrapassável: como é que algo tão natural pode ser, ao mesmo tempo, tão complexo... Se tomarmos consciência de que estamos a improvisar, a improvisação não pára nesse preciso momento?
Não, não acredito que pare.

Porquê?
Porque é que pararia? Só faria sentido que parasse se não pudéssemos ter consciência da improvisação. Ora, eu acho que podemos e que temos consciência da improvisação. Imaginemos que estás a fazer uma coisa que te é habitual, como preparar o jantar para ti, e o telefone toca — é alguém do outro lado a contar-te uma história que muda a tua vida. Tu ouves, desligas, telefonas em seguida para um amigo que acaba por vir a tua casa jantar e contas-lhe a história e os dois bebem... Isso é o que acontece na vida, e isso é improvisar. A dada altura não estás a ter o teu comportamento habitual. Mas o que é isso do “comportamento habitual”? Na cidade, a maioria das pessoas concorda que o “habitual” é ir para a cama às dez da noite, acordar no outro dia às sete e estar a trabalhar a partir das nove. Depois há os outros que se levantam ao final da tarde, vão aos bares, aos clubes, ficam toda a noite acordados. Usam a cidade numa altura em que ela está mais vazia. E para eles isso é o “normal”, sendo que a normalidade é uma questão de convenções, de decidir de que maneira gastamos as horas de sol, de luz...

Eu vivo no campo, posso levantar-me de noite e ficar acordado durante umas horas se me apetecer e dormir uma sesta durante a manhã. É a primeira vez na minha vida em que não tenho uma estrutura a dizer o que fazer e quando o fazer.

E sabe bem...
Oh, é maravilhoso.

O que é que a improvisação perdeu quando se transformou numa técnica?
Eu assisti a essa transformação. Via-a passar de uma ideia, de uma invenção, a uma técnica...

Gostou de assistir a essa transformação?
Bom... O que sinto agora é que era um caminho inevitável. Deu-se quando tentámos implementá-la e torná-la sólida, envolvendo outros bailarinos, levando-os a experimentar e a perceber que ninguém pode controlar aquilo que é essencialmente uma forma de dueto que está sempre a acrescentar informação à técnica que está na sua base, ao que ela é ou pode ser.

Para os que começam agora a trabalhar nesta técnica — e que o farão durante alguns anos — será certamente uma aventura. É preciso estarem preparados para algumas mudanças a sério no seu próprio corpo...

Alguma vez tentou usar técnicas de improvisação na escrita?
Não.

Porquê?
Nunca me interessou improvisar com as palavras. Espero estar a usar a escrita de forma hábil para transmitir pensamentos, ideias. Com a música tenho vontade de improvisar...

Introdução de Steve Paxton à peça "Goldberg Variations"

E improvisa?
Sim... Costumava tocar violoncelo e cantar. Ainda o faço, quando me apetece. Mas as palavras… Estou mais interessado em perceber: como é que um mágico cria uma ilusão. Tanto quanto percebo, é muito técnico, mas eu não sou um mágico...

... Até é, de certa maneira...
Não, não sou, mas com as palavras sinto que acontece o mesmo [que no truque de magia]. Usamos as palavras para produzir uma ilustração. A maneira como mudam, criando formas diferentes de representar determinada ideia, é o jogo de que eu gosto — criar imagens na cabeça das pessoas e na minha. E isso parte de um grande pressuposto, que é o de pensar que todos pensamos a mesma coisa, quando é claro que isso não acontece. Também é claro que as palavras bem escolhidas se aproximam dessa coisa mágica que é comunicar.

Imagina-se a fazer o que faz com o corpo, com a mente, sem esse recurso da escrita?
Sim, imagino. As Goldberg Variations [peça que dançou entre 1986 e 1992] foram esse momento em que decidi explorar sem comunicar.

E porquê?
Porque tinha vindo a comunicar durante todo o período do Contacto Improvisação, com a revista [Contact Quarterly], as aulas, as conferências... Pensei, então, que esta disciplina de representar o que faço através de outro meio estava a impedir, talvez, o meu desenvolvimento na dança. Quando comecei a trabalhar nas Goldberg, decidi que não teria uma forma que já tivesse descrito a mim mesmo ou a outros. Decidi que seria o que fosse. É uma dança sem qualquer suporte social.

Mas passados alguns anos deixou de a dançar, porque sentiu que estava a repetir-se...
Sim, foi isso mesmo. Já não estava a aprender nada, já não estava a descobrir.

O ano de 1986 foi um ano charneira, em que começou a explorar o Material para a Coluna. Como é que ela se relaciona com o Contacto Improvisação no corpo, na prática do movimento? Como é que socializam?
[Risos] No corpo de um bailarino há uma colecção de tudo o que ele fez. Eu ainda tenho Cunningham no meu corpo, o Cunningham que fiz nos anos 1950/60. Ainda tenho Graham. É uma acumulação. As duas técnicas influenciam-se.

O corpo tem memórias físicas de que não consegue livrar-se?
Sim, claro. É como se estivesse escrito nas suas células. Nós podemos esquecer-nos de determinados movimentos porque o nosso consciente não tem acesso a tudo a toda a hora, mas por vezes eles aparecem... Não se pode simplesmente talhar o movimento, dividi-lo em disciplinas e arrumá-lo em secções, dizendo “isto pertence ao ballet, isto pertence  à dança moderna”... Não podemos porque o material que usa é o mesmo: as pernas, os pés, as mãos, os braços, as costas, a cabeça, o peso... São tudo formas de trabalhar o mesmo material, é impossível separá-las.

Peguemos no Material para a Coluna. Parece uma daquelas técnicas que querem levar o corpo a vencer os seus limites,  criando uma série de posições, de movimentos, que me parecem impossíveis... O Contacto Improvisação é diferente...
Eu protesto! São totalmente acessíveis... O Contacto vive numa bolha. As pessoas que são muito boas em Contacto já não estão a experimentar movimentos de extensão nos seus corpos. Esta [abre os braços, como se tentasse chegar às duas paredes laterais daquele espaço, balançando o tronco] não é uma boa forma para trabalhar com Contacto, são precisos ângulos, arestas, curvas. Mas a extensão em dança é um elemento fenomenal e só nós a temos no Ocidente, não conheço nenhum outro lugar onde exista como aqui. Tem uma maneira muito especial de interagir com o espaço, de interagir com a psicologia do bailarino. Vemos a toda a hora pessoas no topo de colinas com os braços abertos assim, como se fossem abraçar o mundo. O ballet é este momento transformado numa técnica que se ensina às crianças, e depois elas crescem e transformam-se em adultos capazes de lidarem com este espaço extremo, alargado, capazes de fazerem grandes gestos para grandes audiências. É um sistema fantástico e estamos a perdê-lo com as formas modernas de dançar, até com o Contacto.

Porque ele exige mais contenção, os tais gestos angulosos...
Sim. Sempre pensei que o Contacto deveria levar a um desenvolvimento do pensamento, a uma técnica que chegasse mais longe, mas para muitas pessoas foi um ponto de chegada, de paragem. Mas por que não pensar no Contacto como uma técnica sobre a qual é preciso elaborar? Isto é movimento, isto é psicologia, isto são os sentidos, isto são células cinzentas, por que não pegar nisto e elaborar, desenvolver? Foi quando eu senti que para muitas pessoas bastava jogar bem o jogo [o Contacto] que comecei a olhar para a coluna e a pensar em exercícios para ela, e foi assim que nasceu Material para a Coluna. O que é muito interessante de ver em muitas das formas que esta técnica propõe é precisamente a extensão do movimento.

É isso que ainda lhe interessa explorar hoje, esse habitar do espaço com gestos mais largos, que chegam mais longe? Ainda vai para o estúdio fazer pesquisa?
Sim, um pouco... Tento encontrar formas de fortalecer um corpo frágil, porque agora tenho 80 anos e as coisas estão a começar a morrer, a energia está a começar a morrer... Sinto que estou num processo que caminha para o fim, embora não saiba quando chegará. Sinto-me bem, ainda funciono, mas o processo do fim da vida já começou. Talvez por isso possa dizer que este é um momento, um lugar, muito interessante para trabalhar.

Nunca se zanga com o seu corpo?
Já estive muito deprimido. Foi difícil...

Não sei por que penso assim, mas sempre achei que para alguém que conhece o seu próprio corpo, como o Steve conhece e domina o seu, seria mais fácil preparar esta fase da vida, porque seria mais fácil antecipar as dificuldades e ir fazendo pequenos ajustes, pequenas cedências... Sempre achei que seria mais sereno... Faz sentido isto?
Sim, faz todo o sentido. O problema é que, apesar disso, não posso controlar o que acontece. [Longa pausa] E tenho mesmo saudades do meu corpo jovem. Ele era mesmo muito divertido [risos]. Acho que o usei muito bem, que não o estraguei ao dançar com ele. Agora estou pronto para o que vem a seguir, seja lá o que for.

Material para a Coluna, Steve Paxton

Pensa nisso, no fim?
A este nível... Com que profundidade posso eu pensar nisso? Mas sei que perdi o meu “frisky...

O que é que isso quer dizer?
Deixe-me ver como posso explicar o que é “frisky”... “Frisky” é dois gatos a brincarem juntos, saltando um por cima do outro... “Frisky”, para mim, é o elemento lúdico do movimento. Já não sou capaz disso...

... no estúdio. E nas ideias?
Não sei. Há dias melhores...

O que é hoje para si um dia perfeito, o que é que faz?
Por vezes levanto-me muito cedo, mesmo muito cedo. Pode ser às quatro da manhã... Tomo um café antes de o Sol nascer e consulto os emails. Depois interrompo para ir ver o Sol levantar-se e vejo as notícias. Em seguida, cumpro as tarefas que tenho a cumprir, como ir buscar lenha, e às vezes durmo mais um pouco. Quando me levanto, brinco com os gatos, vou até lá fora, converso com a Lisa [Nelson, artista e improvisadora que colabora com Paxton há 50 anos]... Tento evitar complicar o meu dia: não receber ninguém para jantar, não ir jantar fora... Cozinhamos juntos, eu e a Lisa. Às vezes é muito divertido cozinhar, quando sinto que estou a controlar tudo, outras vezes é tão simples quanto pôr uma galinha a cozer... Sim, isto é um dia bom. Gosto de ouvir a rádio o dia todo, gosto de ir recebendo as notícias e de me confrontar com a magia destas pessoas que conseguem preencher o dia inteiro com palavras... É incrível.

Por que é a rádio é importante?
Comecei a ter esta relação com ela por volta de 2000, na era Bush. Sentia-me tão ultrajado que comecei a querer saber o que as pessoas pensavam e diziam sobre ele, sobretudo depois do 11 de Setembro. Toda a gente ficou com tanto medo... Quando começou a falar de guerra, ninguém conseguiu contrariá-lo...

... e os que tentaram eram muito mal vistos pela maioria.
Exacto. Nessa altura, eu andava à procura, dia e noite, de vozes que me parecessem sensatas, qualquer voz que fosse capaz de resistir à guerra, ao Governo, e encontrei algumas, sobretudo de comediantes. O John Stewart, por exemplo, salvou vidas...

Se tivesse de escolher uma ou duas coisas entre aquelas mais importantes que aprendeu nos últimos 60 anos enquanto fazia pesquisa sobre o corpo e o movimento, quais seriam?
[Longa pausa] No outro dia ouvi uma mulher dizer que na vida não se trata de ganhar, trata-se de não parar. Por outras palavras: trata-se de não nos sentirmos derrotados quando perdemos. Concordo com isso. Depois há esta ideia de chegar ao fim e de nos conhecermos, de sabermos o que somos, o que queremos. Acho que isso é possível. Eu fi-lo através das artes marciais, que são uma disciplina; fi-lo através da dança, que é uma arte; fi-lo com a meditação, que é uma técnica que qualquer pessoa pode fazer... Tive uma vida fantástica sendo um inconformado, tentando descobrir aquilo de que o corpo é capaz.

O que é que ainda está na sua lista de coisas a fazer?
Nada. E é uma sensação estranha, de certa maneira... Nada.

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