ISDS, o inimigo escondido dos trabalhadores
O equilíbrio de forças nas relações laborais ganhou um novo inimigo, um meio de limitação da progressividade das condições de trabalho, uma ferramenta de oposição à regulamentação laboral pelos Estados, com efeitos potenciais altamente danosos.
O ISDS – Investment State Dispute Settlement (Resolução de litígios entre investidor e Estado) não é apenas uma sigla, é um propósito. É um mecanismo de arbitragem que permite aos investidores de multinacionais processar os Estados em que investem, sem estarem sujeitos às legislações nacionais. Podemos mesmo chamar-lhe uma prenda que consta dos acordos internacionais de comércio e investimento para atrair o capital estrangeiro. Mas será uma prenda boa para todos?
Relativamente aos trabalhadores, casos recentes têm demonstrado que não, sendo já muitas as empresas multinacionais que recorreram ao ISDS para reclamar compensações milionárias:
- Centerra vs. Quirguistão – a empresa considerou-se lesada pela decisão do Estado de aumentar os salários dos mineiros de alta altitude, com consequências para as suas actividades empresariais no país;
- Noble Ventures vs. Roménia – o investidor reclamou uma indemnização, após adquirir uma empresa recém privatizada, cujo processo de privatização acabou por se tornar mais caro do que o previsto, devido a greves e manifestações dos trabalhadores;
- Veolia Propreté vs. Egito – a empresa reclamou uma compensação, por quebra do acordo de investimento para gestão do lixo na cidade de Alexandria, nomeadamente devido ao aumento do salário mínimo.
O denominador comum nestes casos é a capacidade dada ao investidor de, por não ter de recorrer aos tribunais nacionais, sobrepor os seus interesses às obrigações do Estado de salvaguarda dos interesses e direitos dos seus cidadãos. Os Estados são abordados unicamente como outorgantes de um acordo, ignorando-se a dimensão social das suas políticas.
Acredito, por isso, que o equilíbrio de forças nas relações laborais ganhou um novo inimigo, um meio de limitação da progressividade das condições de trabalho, uma ferramenta de oposição à regulamentação laboral pelos Estados, com efeitos potenciais altamente danosos.
Os Estados, nomeadamente Portugal, tendencialmente muito expostos a pressões lobbistas e a políticas macroeconómicas de exigência orçamental e de equilíbrio da balança comercial, têm demonstrado uma excessiva confiança no ISDS, ignorando os impactos negativos na sua própria autonomia. Um Estado que pode ser alvo de uma queixa num centro de arbitragem que não aplica, por a tal não estar obrigado, a legislação nacional na resolução de um conflito, nomeadamente por tomar decisões que beneficiam os trabalhadores, é um Estado cuja soberania é posta em causa.
Também o diálogo social fica mais enfraquecido e refém do impacto que possa causar em investidores estrangeiros e da capacidade dos mesmos, para além do eventual controlo sobre parceiros sociais, de recorrerem ao ISDS para não lhes ser aplicada uma qualquer nova tabela salarial, uma limitação de horários, um regime mais restritivo da polivalência, etc. Logo, nos setores em que as multinacionais atuam, as reivindicações dos trabalhadores tornam-se menos relevantes para os resultados negociais e pode cair-se na tentação da autoregulação.
As multinacionais encontram mais um meio para prevalecer sobre as empresas nacionais, que estão condicionadas pela legislação nacional – como se já não bastasse o desfasamento do poder económico dos fundos e investidores multinacionais em relação à vasta maioria das empresas nacionais e os desequilíbrios concorrenciais que daí resultam. No entanto, quer as confederações patronais e as associações que as integram, quer as centrais sindicais e os sindicatos, enquanto entidades representativas do elo mais fraco na relação laboral, tardam a reagir e a tornar a oposição ao ISDS numa causa sua.
Em Portugal, ainda que o ativismo tenha vindo a tentar contrariar essa realidade, a sigla ISDS ainda é uma quase desconhecida. No entanto, os exemplos apresentados demonstram que as relações laborais também estão em risco e, se necessário, não serão ignoradas. A postura negocial da União Europeia, a falta de transparência, a falta de uma consulta prévia clara aos stakeholders dos vários Estados-membros não ajudam em nada à consciencialização e devem, a meu ver, servir sobretudo como sinais de alerta.
Temo que, tal como no ambiente e nos direitos humanos, nas relações laborais as multinacionais se movam mais rapidamente do que os potenciais prejudicados. E se demorarem a detetar o problema, talvez não cheguemos a tempo...
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico