Huawei: a guerra digital e a democracia
É isto o que, verdadeiramente, motiva a investida americana contra o 5G da Huawei: a ciberameaça.
Os EUA baniram a tecnológica chinesa Huawei do seu mercado e abriram uma ofensiva diplomática junto dos aliados ocidentais para que fizessem o mesmo. Que significado tem isso? Um significado global e da maior importância: económica, política e de segurança.
O mundo da globalização trouxe consigo a emergência de uma nova rivalidade entre os EUA e a China, as duas potências capazes de disputar a liderança da ordem internacional. Desde os tempos de Deng Xiaoping que o modelo da economia de mercado socialista permitiu à China um crescimento económico sem precedentes, alavancado pelas exportações para os EUA, cujos excedentes foram, em larga medida, reaplicados na dívida americana. Ora, este modelo era favorecido pela abertura da economia dos EUA e a China chegou a ser o segundo maior detentor da dívida americana, a seguir à própria Fed. Mas a sua estratégia limitava-se, ainda, ao sector económico e os EUA não sentiam, por isso, a sua liderança ameaçada. Bastava-lhes o seu esmagador poder militar e a hegemonia do seu soft-power.
Todo este modelo é posto em causa, a partir de 2013, com a chegada ao poder de Xi Jinping, a sua estratégia revisionista e o objectivo declarado de alcançar a liderança mundial até 2049. A eleição de Trump em 2016 veio, por seu lado, alterar a política externa americana e chocar, frontalmente, com esta estratégia chinesa. O nacionalismo populista e o nativismo proteccionista da nova administração conduziram a um fechamento dos EUA sobre si próprios e à guerra comercial com a China. Mas engana-se quem pensar que essa guerra é apenas uma questão alfandegária. Porque é muito mais do que isso. A verdadeira questão não são as tarifas, é o controle da alta tecnologia. É uma guerra digital pela liderança da nova geração da rede sem fios: a tecnologia 5G. Tudo isso tem, obviamente, uma dimensão económica e empresarial. Mas vai muito para além disso e comporta também uma forte dimensão política e de segurança.
Tem uma dimensão económica porque o 5G é o futuro das telecomunicações, da big data e da inteligência artificial, o que significa um payoff potencial nunca visto. E tem uma dimensão empresarial, porque é aí que se joga a liderança mundial entre as tecnológicas americanas e chinesas.
Mas é, também, uma questão de segurança, ou melhor, de cibersegurança. Primeiro, porque é sobre estas tecnologias que repousam as redes e os dados referentes aos Estados e aos cidadãos que podem ser alvo de manipulação ou até de espionagem e sabotagem. Depois, porque a relação entre as empresas privadas e o Estado chinês não é a mesma das democracias ocidentais. A China aprovou recentemente uma lei sobre a cibersegurança e outra sobre a informação que estabelecem a obrigatoriedade de colaboração das empresas com os órgãos responsáveis pela segurança nacional, criando um “quadrilátero digital” entre as empresas tecnológicas, os organismos estatais de investigação e desenvolvimento, as forças militares e as agências de intelligence. Isto é, as tecnologias e as informações das empresas podem ser postas ao serviço dos interesses do Estado. Ora é isto o que, verdadeiramente, motiva a investida americana contra o 5G da Huawei: a ciberameaça. E é essa mesma razão que motiva o seu apelo aos aliados para banir a empresa chinesa. Este apelo coloca os países que têm interesses económicos e estratégicos em lados diferentes entre a espada e a parede. Por um lado, a Huawei oferece alta qualidade e baixo preço e uma ruptura pode significar perdas económicas e atrasos tecnológicos. Por outro, o risco da cibersegurança não pode ser ignorado.
Vários países acompanharam já os EUA e baniram também a Huawei. Outros anunciaram que o irão fazer. Mas a situação na Europa é particularmente difícil: primeiro a Hauwei tem uma forte penetração no mercado europeu e parcerias com os fornecedores locais em vários países, incluindo Portugal. Segundo, a China não é vista na Europa como um rival estratégico, o que torna difícil a percepção da ciberameaça pela opinião pública.
Mas uma coisa é certa: esta é uma decisão estratégica. E a Europa deve pensar uma estratégia autónoma. Mas os responsáveis europeus, incluindo os portugueses, terão que ponderar não só a dimensão empresarial, mas também o risco de segurança, sabendo que a NATO é ainda a garantia da nossa defesa. Mas, mais do que isso, que o 5G vai dividir as águas e definir a nova a fractura política na ordem internacional: de um lado o autoritarismo, do outro a democracia.
Talvez não fosse pior pensarmos onde queremos estar.