Inaugurações e propaganda pré-eleitoral: CNE só actua se houver queixa

Duas inaugurações com festa e apelo ao voto, em violação da lei, podem ocorrer na mesma altura e ter um tratamento diferente pela CNE. Aquela de que ninguém se queixar fica impune.

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Nuno Ferreira Santos

A Comissão Nacional de Eleições (CNE) só analisa os casos de eventual violação da neutralidade das entidades públicas em período de pré-campanha eleitoral, como as inaugurações ou as mensagens políticas em boletins municipais ou governamentais, se alguém lhe apresentar queixa. Aquela entidade tem uma forma de funcionar diferente da da Entidade das Contas e Financiamentos políticos, que escrutina as acções de campanha eleitoral com actividades inspectivas no terreno.

A filosofia da CNE é reactiva. O que significa que duas inaugurações de equipamentos públicos com festa e mensagem política de apelo ao voto em dois pontos diferentes do país que violam a mesma lei podem ter um tratamento diferente pela CNE se por acaso só for apresentada queixa num dos casos — o outro ficará impune.

As dúvidas sobre o tipo de eventos que entidades públicas, em especial as autarquias, podem fazer nos próximos meses surgiram após a nota da CNE, que, na passada semana, lembrava que “é proibida a publicidade institucional por parte dos órgãos do Estado e da Administração Pública de actos, programas, obras ou serviços, salvo em caso de grave e urgente necessidade pública” desde a marcação das europeias pelo Presidente da República a 27 de Fevereiro.

Apesar de até agora terem sido sobretudo as câmaras municipais a queixar-se — talvez por a nota da CNE dar exemplos reais baseados em outdoors e boletins municipais que chegaram ao Tribunal Constitucional na sequência das autárquicas de 2017 —, também o Governo está sujeito às mesmas regras. Ainda ontem o primeiro-ministro foi a um novo centro de saúde de Odivelas, onde o cartaz dizia claramente que se tratava de uma “inauguração”, embora um convite enviado a várias pessoas — em especial autarcas da zona — afirmasse que era uma mera “visita”.

Uma vez que estão “proibidos todos os actos de comunicação que visem, directa ou indirectamente, promover junto de uma pluralidade de destinatários indeterminados, iniciativas, actividades ou a imagem de entidade, órgão ou serviço público”, a passagem de António Costa por Odivelas é o tipo de situação que poderá vir a ser analisada pela CNE. Mas não por iniciativa própria. “Só funcionamos com queixas”, confirma João Tiago Machado, porta-voz da CNE, afirmando que a comissão não tem gente para fiscalizar o cumprimento da lei em todo o território.

Mas se a CNE avisa sobre as proibições, deixa também uma porta aberta: “É aceitável que as entidades públicas veiculem determinado tipo de comunicações para o público em geral, informando sobre bens ou serviços por si disponibilizados, quando tal comunicação seja imprescindível à sua fruição pelos cidadãos ou seja essencial à concretização das suas atribuições.”

É por isto que o porta-voz da CNE, João Tiago Machado, diz que a comissão, ao invés de restringir, “até alarga” as autorizações previstas na lei, que só permite publicidade institucional “em caso de grave e urgente necessidade pública”. Anúncios de “festividades tradicionais”, de condicionamentos de trânsito ou “campanhas para a promoção da saúde” são alguns exemplos permitidos que constam da nota informativa. “Não vejo como é que a CNE pode ser vista como a má da fita”, comenta o porta-voz.

Inaugurações sem festa

A exigência da neutralidade e da imparcialidade das entidades públicas em tempo de pré-campanha eleitoral está em vigor há décadas, mas a lei de 2015 vem tornar a regra mais específica e incisiva, e dá à CNE uma força de interpretação legal que não tinha antes, porque a norma legal era mais abstracta. Agora estão especificamente proibidos “actos, programas, obras ou serviços”. Isso significa que não pode haver inaugurações? Podem fazer-se, mas com uma apresentação mais sóbria. Por exemplo, sem chavões ou mensagens políticas como “Um concelho mais saudável”, “Fazemos obra” ou “Melhorámos por si”. Em duas palavras: sem festa.

Porém, também é certo que em alguns casos a linha que separa a informação da mensagem política pode ser muito ténue. E nas decisões tomadas pela CNE poderá pesar a composição do próprio órgão — seis dos dez membros são representantes de cada um dos grupos parlamentares, a que se somam três representantes de departamentos governamentais e um presidente designado pelo Conselho Superior de Magistratura.

O entendimento da CNE sobre a lei de 2015 encontra respaldo em acórdãos do Tribunal Constitucional (TC), que nos últimos dois anos deu sistematicamente razão à comissão e condenou inúmeros autarcas ao pagamento de pesadas coimas — o valor mínimo são 15 mil euros.

Dentro da CNE admite-se que a nova regra, de tão específica, abriu uma espécie de caixa de Pandora, e que nem os deputados que aprovaram o diploma em 2015, depois de um longo processo de discussão na Assembleia da República, têm noção das consequências da letra da lei.

O princípio que norteará a interpretação do novo artigo da lei entre os membros da CNE será a razoabilidade de aceitar que a vida institucional do país não pode ficar paralisada durante oito meses por causa das sucessivas eleições e que a gestão normal e corrente tem de continuar a ser assegurada, apurou o PÚBLICO. Será preciso fazer, em cada caso analisado, a distinção entre o que são actos de propaganda política e actos de gestão normal de uma autarquia, ministério ou outra entidade pública. Dois exemplos: não serão aceitáveis boletins municipais com excesso de fotografias dos eleitos a inaugurar obras ou a fazer promessas de obras para o futuro; mas serão aceitáveis os outdoors que anunciam o preço do novo passe social na Área Metropolitana de Lisboa porque são meramente informativos e sem mensagem política.

A nota da CNE deixou autarquias e empresas de comunicação social apreensivas. As primeiras estão a questionar diariamente a comissão sobre se podem organizar algumas iniciativas, e as segundas já se reuniram com a CNE para aferir o tipo de cobertura que é possível fazer. Por exemplo, a Câmara de Lisboa ainda não tem data para lançar nas ruas a campanha de sensibilização sobre lixo que anda a prometer desde o Verão. O processo já estava atrasado e a situação piorou nos últimos dias, porque se instalou a dúvida: a campanha pode avançar agora, em período pré-eleitoral?

A “folga” do Governo

Nesta “guerra” entre a CNE e o poder político, acabará por ser o Presidente da República a balizar o calendário. Se daqui até ao dia das eleições europeias está proibida a publicidade institucional, esta poderá voltar a fazer-se entre o dia 27 de Maio e a data do próximo decreto presidencial a marcar eleições — que terá de ser publicado no máximo até 22 de Julho — para oficializar a data das regionais da Madeira, que se realizam 60 dias depois. As legislativas serão a 6 de Outubro e o prazo mínimo é também de 60 dias.

Em nenhum dos casos se espera que Marcelo Rebelo de Sousa deixe o decreto para o fim do prazo. Junho deverá ser, por isso, o mês por excelência para o Governo fazer eventos de apresentação de contas e obras feitas sem os constrangimentos das leis eleitorais.

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