A crise dos rohingyas é um problema político na Birmânia que o mundo tem de ajudar a resolver
Há 12 anos que Manuel Pereira é trabalhador humanitário. Agora, coordena a acção da Organização Internacional das Migrações em Cox’s Bazar, no Bangladesh, onde se refugia um milhão de rohingyas.
Mais de um milhão de refugiados no Bangladesh. Mais de três mil pessoas de mais de 100 ONG no terreno. O conjunto de organizações humanitárias acaba de pedir 920 milhões de dólares (mais de 818 milhões de euros) para uma “operação muito cara”. A crise dos rohingyas é uma crise gigante, a três dimensões. “Há um problema político na Birmânia que tem de ser resolvido e o mundo tem responsabilidades nessa resolução”, explicou ao PÚBLICO Manuel Pereira, coordenador humanitário da Organização Internacional das Migrações (OIM) durante uma conversa na base de operações da OIM em Cox’s Bazar. Aqui, pensa-se rápido e “fora da caixa” para salvar pessoas. “É preciso dedicação e é preciso querer. Não é uma vida fácil, é a vida de expatriado com algumas agravantes”, admite o português que decidiu fazer da assistência humanitária a sua vida — esteve em Timor, no Paquistão, nas Filipinas, em Moçambique e no Iraque. “Vou de país em país e levo a minha vida comigo.”
A questão dos rohingyas vai resolver-se? Quando?
A crise rohingya é um problema político que necessita de uma resolução que está do lado da Birmânia. Acho que as partes estão em conversações, a discutir o problema, mas tenho a certeza de que é um processo que necessita o seu tempo. Não é imediato, mas, a médio prazo, esperemos que haja movimentos positivos no sentido de se resolver algumas das questões de base que criaram este conflito.
As pessoas nos campos acreditam que podem voltar a casa?
Mais do que as pessoas acreditarem que vão voltar, temos de salientar o facto de que as pessoas quererem voltar. A maioria da população é muito insistente no facto de querer voltar para as suas casas, para as suas terras, para o seu meio conhecido. E acho que isso é muito positivo. Não acho que seja uma população que esteja resignada. É muito resistente. Enfrentou muitas coisas, mas hoje em dia precisa de alguma segurança, alguma informação para poder tomar uma decisão quanto ao seu futuro. Essa é a parte com que estamos a trabalhar.
As ONG estão preparadas para reforçar esse apoio e mantê-lo durante um tempo superior ao desejado?
Ao fim de um ano — e depois de actuarem na primeira fase de emergência –, as organizações entraram num sistema que é mais racional e que tem um custo mais equilibrado. Ainda assim, as grandes necessidades que temos são financeiras e humanas, pelo tamanho da escala da crise, o tamanho e número de pessoas às quais temos que providenciar serviços. Não podemos esquecer que as pessoas se mudaram para o Bangladesh, fugiram para o Bangladesh. Encontram-se numa situação que é fora do normal, fora da comunidade. Todo o processo social de se restabelecer uma comunidade demora o seu tempo e para isso são necessários recursos financeiros. Nós não os temos. O conjunto das organizações humanitárias pediu agora 920 milhões de dólares (mais de 818 milhões de euros) para este ano. É uma operação muito cara. A geografia do terreno tem muito a ver com o custo desta operação.
Estamos a falar de milhões de euros, de milhões de pessoas, de muitos, muitos números...
Em termos de números, é uma crise muito complicada. Temos aproximadamente um milhão de pessoas. O número não é certo. Continua-se a fazer processo de verificação e registo da maioria dos refugiados. Existem mais de 100 ONG a trabalhar aqui e praticamente todas as agências da ONU também aqui estão. Há mais de 3000 internacionais a trabalhar em Cox’s Bazar nestas organizações. É uma operação muito cara porque 50% das pessoas são muito vulneráveis, mulheres, crianças, idosos, pessoas com alguma incapacidade física. E estas incapacidades são exacerbadas pela geografia do terreno. Tudo o que tentamos fazer é mais caro pelas três dimensões. Se fosse plano, poderíamos assumir uma série de soluções técnicas que reduzem os custos. Mas com esta componente da altura é muito difícil. É muito difícil o acesso de pessoas em cadeiras de rodas e pessoas idosas, é muito difícil criar sistemas de transporte e distribuição de água e manter essa qualidade. Os materiais – pelo facto de o terreno não ser plano e não haver estradas – são todos carregados à mão. A IOM tem uma brigada de carregadores (pessoas que levam a assistência às casas das pessoas — chegamos a trazer pessoas para os hospitais com dois carregadores com macas feitas de lona de pára-quedas) para podermos garantir que as pessoas têm acesso ao serviço. É realmente uma operação muito cara e complicada e continuamos a apelar aos Estados-membros e aos países do mundo para que não se esqueçam desta crise e possam também contribuir para melhorar a qualidade de vida dos rohingyas.
O desafio tecnológico é muito importante. O drone tem sido uma ferramenta importante...
A escala da operação obriga-nos a pensar “fora da caixa”, temos de pensar de forma diferente. A tecnologia, hoje em dia, tem muitas facetas, umas aplicáveis e outras não: os drones têm sido um elemento para criar escala e percepção da escala desta operação. Somente com um drone lá no alto podemos descobrir onde estão os melhores caminhos, os melhores recursos, onda há mais problemas em termos de planeamento e reorganização do espaço. Usamos a cartografia dos drones para entregar aos nossos desenhadores para se fazer desenho do espaço de modo a melhorar as condições de vida e a garantir que há organização e racionalização dos recursos disponíveis.
Quais são as áreas de intervenção da OIM?
A OIM trabalha com os rohingyas pelo menos desde 2013, quando ainda o grande grupo estava na periferia dos campos de refugiados registados — porque nem todos os rohingyas no Bangladesh eram considerados refugiados. Havia mais de 200.000 cidadãos não documentados, considerados como birmaneses, com condições de vida muito difíceis. A OIM começou a trabalhar, e em 2017 vieram muitas mais organizações acompanhando a grande migração. Neste período, a OIM aumentou a escala dos seus serviços, como a saúde, água e saneamento, protecção, abrigo e bens não-essenciais, na saúde mental, na gestão e na coordenação dos campos. Fazemos todos os serviços que possam ser necessários aos refugiados, com excepção de educação directa e distribuição de alimentos, que são feitas por parceiros das Nações Unidas com quem trabalhamos.
Quais são as dificuldades principais no dia-a-dia?
Um dos pontos mais difíceis do nosso trabalho é o acesso. O facto de a geografia do terreno ser bastante montanhosa — muitos pequenos montes — leva a que o processo de identificação de necessidades das pessoas seja mais demorado e que o processo de garantir que a assistência e os serviços cheguem às pessoas também seja mais demorado. A garantia do acesso é uma das nossas maiores preocupações e é mais difícil porque precisa de infra-estruturas, necessita de caminhos, de pontes, necessita de ruas. Os caminhos têm de ser feitos em tijolo ou cimento porque, quando chega a época das monções e a lama... Como se leva 50 kg de arroz às costas em estrada de lama? Não funciona. Essa é uma prioridade. A segunda é a comunicação. Os rohingyas não têm língua escrita. Têm língua de tradição oral, que não é igual ao bengali ou ao chitagong, as línguas mais faladas na península com as quais têm afinidades. E é essa dificuldade de comunicação que estamos gradualmente a trabalhar. Aprendemos mais a língua dos rohingyas e eles o inglês. Estamos a tentar que esta comunicação seja mais efectiva. Só entendendo quais as necessidades, as preocupações e a satisfação dos rohingyas podemos adaptar tudo o que fazemos para criar esse efeito de dignidade e pertença que eles hoje em dia não têm.
Vimos algumas novas extensões dos campos. O que evoluiu desde o início?
O tempo. Os primeiros campos foram estabelecidos numa altura em que era impossível responder à dimensão do fluxo de pessoas que chegavam da Birmânia. Estes últimos campos já foram feitos seis meses depois da migração, pelo que foram feitos com base em planeamento. Não houve alojamento espontâneo, não houve alojamento caótico. Tivemos a oportunidade, como em muitas outras emergências, de fazer o planeamento não só dos abrigos, mas também dos serviços e acessos e outra dimensão de preservação e desenho do espaço que não tínhamos feito antes. Temos feito um grande esforço para que estes novos campos representem o mais possível o modelo que gostaríamos de ver aplicado nas zonas mais densas. Precisamos verdadeiramente de descongestionar as zonas mais antigas do campo porque existem muitas factores de protecção, saúde, epidemiológicos que nos preocupam se não o fizermos.
Parece um contra-senso Portugal ter António Vitorino (líder da OIM) e António Guterres (secretário-geral da ONU) e os portugueses desconfiarem da ajuda internacional e da sua importância. Há alguma razão para isso ainda acontecer?
É uma questão de desconhecimento, e não é só dos portugueses. E é uma questão global. Hoje em dia, a resposta rápida dos meios de comunicação social obrigam a um foco de atenção muito curto. A crise dos rohingyas foi muito importante, passou em todas as notícias de 2017, mas hoje em dia não é um problema que a maioria das pessoas tenha capacidade de articular e de entender. Para nós, é muito importante continuar a chamar a atenção não só da situação dos rohingyas aqui e das suas necessidades, mas também fazer entender que há um problema político na Birmânia que tem de ser resolvido e que o mundo tem responsabilidades nessa resolução.
Qual é a forma mais eficaz de agir e ajudar?
A forma mais eficaz de as pessoas ajudarem é continuarem a discutir o problema, chamarem a atenção para o problema, criarem pressão política sobre o Governo de Portugal e o governo da União Europeia, para que, junto das instâncias multilaterais, se possa continuar a fazer pressão para que este problema, no futuro, seja resolvido nas suas raízes, no fundo das questões que originaram este deslocamento em massa. Além disso, é sempre oportuno que as pessoas possam contribuir doando dinheiro às ONG, às agências das Nações Unidas que estão aqui no terreno a fazer o trabalho. A OIM trabalha sobretudo com a cooperação bilateral dos países e é por isso que faço este convite aos cidadãos para que peçam aos seus governos que façam pressão e mantenham a crise rohingya no topo das suas políticas.
Numa das zonas mais pobres do Bangladesh, as relações com as comunidades locais já foram melhores. É importante manter também essa ajuda?
Na ajuda humanitária, não nos focamos só nos refugiados. O conceito de assistência à população afectada é um conceito lato. A população deslocada, refugiada e a população de acolhimento são todos incorporados nos programas de assistência humanitária. É óbvio que a assistência vem baseada em critérios de necessidade e vulnerabilidade e os refugiados e deslocados têm critérios que alguma da população acolhedora não tem. Mas nós contribuímos e fazemos distribuição de bens não-alimentares, fazemos programas de abrigo, fazemos programas de água e de saneamento para essas comunidades porque são aqueles que têm de ter a capacidade de partilhar os recursos com este novo grupo de pessoas. Mas também é muito importante que esta partilha de recursos não seja factor de crise nem de conflito entre as comunidades. Se só assistirmos um grupo, o outro vai ressentir-se. Não é uma forma válida de trabalhar nem está de acordo com princípio acordos humanitários. No Bangladesh, sendo uma região com bastantes vulnerabilidades socioeconómicas, é ainda mais necessário que este trabalho seja feito. Mas também temos de reconhecer que é um trabalho que tem se ser feito pelas agências de desenvolvimento, não tanto pelas agências de assistência humanitária. Hoje em dia, falamos da ligação entre a assistência humanitária e o desenvolvimento, e a lógica desse processo, que está na berra e que finalmente o mundo entendeu que é uma necessidade, consiste, sobretudo, na criação de mecanismos e infra-estruturas e serviços no momento da crise humanitária que a médio/longo prazo possam ter efeitos na melhoria das condições de desenvolvimento da população em geral, beneficiando as populações em crise e os povos de acolhimento.
Qual é o perfil de pessoa para trabalhar no terreno?
Sou contrário à ideologia do perfil. Tenho muitas dificuldades com a lógica de que os intervenientes em ajuda humanitária precisam de um currículo, de uma formação específica. Acho que os trabalhadores de ajuda humanitária são a agregação de muitas profissões, de muitas perspectivas e de muitas capacidades. É essa diversidade que nos dá a adaptabilidade e resistência de podermos trabalhar, porque não somos formatados, não somos um grupo coeso. É preciso não ser um grupo coeso para conseguir, de vez em quando, dizer ‘está mal, está bem’, mudar de opinião. É preciso dedicação e é preciso querer. Não é uma vida fácil, é a vida de um cidadão fora do seu país, com algumas agravantes. Mas quando as pessoas têm vontade e vocação, quando as pessoas têm capacidade de absorver esta diversidade que existe neste meio, é meio caminho andado. Há também o ponto de vista das relações pessoais e familiares, muito difícil de digerir. Ainda assim, não é diferente da situação dos milhões de emigrantes portugueses e outras nacionalidades que já o fazem. É um processo que tem dificuldades, mas também traz enriquecimento pessoal. Mais portugueses deviam tentar fazê-lo. Nós precisamos de mais portugueses no mundo. Contribuir e aprender que há muito que podemos levar para Portugal, mas muito que podemos contribuir para a humanidade em geral.
É a vida de andar com um contentor atrás?
Eu decidi fazer da assistência humanitária e da assistência para o desenvolvimento a minha vida. E no momento em que decidi isso, não olhei para trás. Vou de país em país e levo a minha vida comigo. A minha estabilidade passa por me sentir em casa em todos os países onde trabalhei. Faço disso a base da minha capacidade para poder continuar nessa vida. Chego a um país e escolho casa, monto o contentor e, quando este chega, monto a minha casa e faço a minha vida o mais normal que consigo, dadas as condições do país. Isso permite-me ter uma tranquilidade que me ajuda a enfrentar o meu dia-a-dia. Quero levantar-me diariamente e estar feliz para ir trabalhar. Preciso disso. Não é diferente de milhares de pessoas que migram. Tenho facilidade de ir ver a família com regularidade, mas há migrantes que estão anos e anos sem conseguir ir a casa. São condições muito diferentes.
Não há descanso para os trabalhadores internacionais que cá estão...
Há picos. O dia é sempre muito intenso. Quando chega a época das monções e começa a chover, não há tanto descanso e tanta capacidade de o cérebro desligar, porque o que se passa lá fora continua, nas nossas cabeças, a reflectir o que se está a passar no campo, a máquina a funcionar: “Tenho de fazer isto e aquilo, não me posso esquecer disto…” E somos tantos e a pensarmos todos aos mesmo tempo... Não é fácil descansar. Muito importante é a saúde mental dos trabalhadores comunitários. É dos assuntos mais preocupantes para mim, enquanto gestor, conseguir fazer o balanço entre a vida pessoal e profissional, garantindo na vida pessoal que o descanso é uma das prioridades da organização.
Esta vida começou em Timor, certo?
Formei-me em Engenharia do Ambiente. Fui trabalhar para uma empresa de consultoria, despedi-me para ir com amigos para Timor-Leste, onde fiz biscates em vários sítios, incluindo a Embaixada de Portugal. Voltei a Portugal e fui vender livros para uma grande cadeia de lojas. Voltei de férias a Timor para rever amigos, durante o processo de conflito em 2006 e voluntariei-me para a ONU. Fiz contrato de um dólar por dia. Voltei a Portugal para o meu trabalho no Ministério do Ambiente, mas ofereceram-me trabalho e fui para Timor, onde fiz três anos de assistência aos deslocados em contínuo. Depois fiz mestrado em Inglaterra em Emergências e Desenvolvimento e no final pediram-me para ir para o Paquistão, onde estive quatro anos. Depois Filipinas para a resposta ao supertufão. Depois Moçambique, a trabalhar na capacitação dos governos do Sul da África para lidarem com o deslocamento interno. Seguiu-se o Iraque, para a gestão de campos na Operação Mossul. Agora voluntariei-me para o Bangladesh para gerir a operação dos rohingyas... É mais ou menos isto. São 12 anos.
O PÚBLICO viajou no âmbito da Bolsa de Exploração Nomad