A Surreal Academia da Direita Espanhola?
Há em Espanha quem não queira partilhar a volta ao mundo com mais ninguém, e uma Real Academia que se presta a essa agenda.
É triste a notícia de que a Real Academia de História espanhola preparou um relatório, a pedido do diretor do ABC, jornal conservador daquele país, para registar em ata a “plena e exclusiva espanholidade da empresa” da que viria a ser a primeira viagem de circum-navegação do mundo, comandada na sua maior parte por Fernão de Magalhães. E é triste porque estas polémicas nos dizem sempre mais sobre o presente do que sobre o passado, e o que a participação da Real Academia espanhola nos diz é que a erudita instituição se acha plenamente contaminada pela política.
Quem vai seguindo a política espanhola sabe que ela tem uma constante: quando há um governo de esquerda ou apoiado pelas esquerdas, a direita conservadora e nacionalista não pode nunca admitir-lhe uma simples oposição ideológica e política. Não; é preciso que o governo seja caricaturado como um governo antiespanhol, que negoceia o país com separatistas, que antes era acusado de ser tolerante com o terrorismo e por aí adiante. E agora até Portugal é metido nesses assados, porque esta direita considera que o governo espanhol se humilha e ajoelha perante o governo português, ou — para surpresa nossa — que “a diplomacia portuguesa perdeu completamente o respeito a Espanha”.
Esta última frase era a conclusão já há um mês de um artigo do editor de cultura do mesmo ABC que o jornal propagandeia como sendo sobre “as ridículas mentiras que Portugal conta para se apropriar da viagem de circum-navegação ao mundo”. Os termos não poderiam ser mais agressivos em relação a Portugal, o que surpreende pelo seu inusitado. Mas, não se enganem, Portugal é apenas uma vítima colateral nesta contenda: o que choca verdadeiramente o jornalismo da direita espanhola é o governo espanhol ter decidido cooperar com o governo português em algumas comemorações relativas à viagem de Magalhães e apresentar conjuntamente a candidatura da viagem de Magalhães à lista de Património da Humanidade da UNESCO. O que significa, nas palavras do articulista, “ter oferecido metade da comemoração a Portugal”. Ou seja, o governo espanhol, “bonzinho e ingénuo”, deixou-se enganar por nós portugueses que roubámos a Espanha uma comemoração que só pode ser entendida como “plena e exclusivamente espanhola”.
Isto indica-nos, é claro, que o nacionalismo espanhol está doente. Doente talvez de várias coisas, mas doente sobretudo de eleitoralismo. Para vermos quão alta vai a febre, lembremos que há uns dias a extrema-direita espanhola foi ao Parlamento Europeu dizer que “se não fosse por Espanha todas as mulheres da sala usariam burca” — aí já não se importando de se apropriar da Batalha de Poitiers, em 732, ganha pelos francos e borgonheses contra os avanços dos árabes. Mas daqui a umas semanas virão as eleições, a Espanha terá um novo governo, e a temperatura baixará talvez um pouco.
O que não passará tão depressa é a memória de a Real Academia de História se prestar a ser participante num jogo destes. Por um lado, o seu relatório cita factos que são conhecidos de toda a gente e nunca negados, nem por Portugal, nem em lugar nenhum do mundo — que Magalhães fez a viagem sob patrocínio de Carlos I, rei de Espanha (depois Carlos V como imperador do Sacro Império Romano-Germânico); que os barcos e o dinheiro para a expedição foram espanhóis; que foi Sebastián Elcano, marinheiro espanhol, que terminou ao comando da viagem depois de Magalhães ter sido assassinado em Mactán, nas atuais Filipinas. Por outro lado, a Real Academia tira daqui que a circum-navegação só pode ter sido, toda ela, “plenamente”, “exclusivamente”, espanhola.
Poderíamos entrar nesta guerra de alecrim e manjerona com argumentos semelhantes: então e as viagens que Magalhães fez antes no Índico em frotas portuguesas, e que fazem dele o primeiro humano que documentadamente regressou a um ponto do planeta onde tinha estado antes, cumprindo a viagem pelo outro lado do planeta? Também pertencem “exclusivamente” a Espanha, ou serão “ridículas mentiras”? Então e os marinheiros italianos, franceses e gregos que iam na expedição? Então e Antonio Pigafetta, da República de Veneza, que pagou para viajar com Magalhães e escreveu o primeiro texto sobre a viagem à volta do mundo? E as informações do único livro que sabemos ter sido possuído por Magalhães, do italiano Ludovico di Varthema, e as fontes que ele tinha recolhido entre persas e indianos? Tudo “exclusivamente” espanhol, mais nada para ninguém?
Mas rapidamente ao compilar estes factos nos apercebemos de uma coisa tão óbvia que até dói: que a viagem à volta do mundo pertence a gente de muitas origens e que a comemora quem quiser. Se há política na história desta viagem ela deve ser virada para o futuro e generosa, ajudando-nos a pensar como tornar hoje a humanidade mais unida, a globalização mais justa e o planeta mais viável para todos.
Em vez disso, há em Espanha quem não queira partilhar a volta ao mundo com mais ninguém, e uma Real Academia que se presta a essa agenda. A continuar assim, veremos um dia os doutos académicos do país vizinho escrever relatórios sobre o Real Madrid para explicar por que razão a equipa anda a perder muito mais desde que o Cristiano Ronaldo de lá saiu. Sendo o Real Madrid uma empresa “exclusivamente espanhola” tais coisas não deveriam suceder.