Uma mulher a aprender a tornar-se escritora
“Escrevo sobre tudo o que é insano, triste, mau e belo”, afirma a britânica Deborah Levy sobre Coisas que Não Quero Saber, resposta ao ensaio de George Orwell Porque Escrevo. É uma autobiografia sobre a essência e a génese de uma escritora e um olhar político e estético sobre o mundo.
Em 1946, um ano depois do fim da Segunda Guerra Mundial, George Orwell escrevia: “Todos os escritores são vaidosos, egoístas e preguiçosos, e no fundo das suas motivações reside um mistério. Escrever um livro é uma luta horrível e extenuante, como uma longa crise de uma doença dolorosa. Nunca nos entregaríamos a tal coisa se não fôssemos conduzidos por um qualquer demónio ao qual não podemos resistir nem sequer compreender. Tanto quanto sabemos, tal demónio é simplesmente o mesmo instinto que faz um bebé berrar para chamar a atenção. E contudo é também verdade que nada de legível se consegue escrever, a menos que lutemos constantemente para apagar a nossa própria personalidade. A boa prosa é como uma vidraça.” O excerto pertence ao ensaio Porque Escrevo, publicado em Portugal no volume Porque Escrevo e Outras Histórias (Antígona, 2008). Sessenta e sete anos depois, outra escritora, a britânica de origem sul-africana Deborah Levy pegou no ensaio de Orwell e escreveu Coisas Que Não Quero Saber, primeiro de três volumes autobiográficos, recentemente com edição portuguesa, que se apresenta como uma resposta ao ensaio de Orwell. Nele, Levy mergulha na sua intimidade para falar de política, fazer crítica social, pensar o feminismo, a literatura e ela mesma na literatura. “Escrevo sobre tudo o que é insano, triste, mau e belo”, afirma ao Ípsilon sobre esse livro que começa com a manifestação de um estado depressivo: “Naquela primavera em que a vida era muito dura e eu estava em guerra com o meu destino e não conseguia ver para onde havia de ir, chorava sobretudo nas escadas rolantes das estações de comboio.”
O que é que uma entrada como esta pode ter a ver com Orwell? Ilumina o leitor para as páginas que se seguem e pega no pressuposto orwelliano de que para se conhecer as razões de um autor é preciso saber mais sobre ele. Não apenas “o seu percurso prévio”, como defendeu o escritor, mas um presente de crise pessoal, como neste caso. E daí partir Levy parte para uma averiguação de hipóteses acerca da condição de um escritor. No caso, uma escritora.
A nota de abertura do livro de Levy, é por isso, uma declaração tão pessoal quanto uma resposta política. “Orwell foi um dos escritores políticos mais interessantes da Grã-Bretanha”, diz Deborah Levy nesta conversa por e-mail, lembrando as quatro razões ou impulsos identificados nesse ensaio pelo autor de 1984, os motivos que poderiam levar alguém a ser escritor. A saber: “Propósito político, impulso histórico, puro egoísmo, entusiasmo estético”. Levy partiu daí: “Eu pensei que eram tópicos muito bons e que lhes poderia dar uma nova perspectiva, o ponto de vista de uma escritora.”
Dividido em quatro partes, correspondentes aos tais quatro motivos apontados por Orwell numa sequência proposta por Levy — Objectivo Político, Impulso Histórico, Puro Egoísmo e Entusiasmo Estético —, o livro arranca com uma viagem de avião até Palma de Maiorca, onde Levy vai recuperando memórias. “A primeira vez que lá fiquei tinha vinte e poucos anos e escrevia o meu primeiro romance numa máquina de escrever Smith Corona que transportava dentro de uma fronha; depois voltei com trinta e muitos anos, quando estava apaixonada e viajava com aquilo a que se chama um computador ‘transportável’.” Agora encontra um chinês, dono de uma loja, que a reconhece de a ler. “É escritora, não é?”
Romancista, dramaturga, poeta, ensaísta, duas vezes finalista do Booker Prize, em 2013 com Swimming Home e em 2016 com Hot Milk, Deborah Levy aceitou o desafio de uma pequena editora, a Notting Hill Editions, dirigido a vários autores, escrever um ensaio literário como resposta a um ensaio famoso de outro autor. Calhou-lhe Orwell. O resultado é um texto brilhante, cheio de pistas literárias, profuso em notas de reflexão, escrito de forma clara, a escapar à argumentação óbvia, capaz de gerar uma reflexão profunda sobre a identidade, a relação entre presente e passado, ao mesmo tempo que permite a leitura escorreita. Cada leitor pode demorar-se o tempo que quiser nas menos de cem páginas do livro e olhar Levy como quem olha através da tal vidraça sugerida por Orwell.
“É escritora, não é?”, perguntava-lhe então o homem. E a pergunta surge quando Levy anda às voltas com a ideia de hesitação. Identitária também, mas sobretudo enquanto estratégia de escrita. Para falar disso, dá o exemplo de uma actriz que, como um escritor, tem de se fazer ouvir. “Fazer-se ouvir não é falar mais alto, mas sentir-se no direito de expressar um desejo. Hesitamos sempre que desejamos uma coisa. No meu teatro, gosto de mostrar a hesitação e não de ocultá-la. Uma hesitação não é o mesmo que uma pausa. É uma tentativa de anular o desejo.” Pode-se simplesmente murmurar e ser-se ouvido.
Levy transpõe esse raciocínio para a discussão entre forma e conteúdo, mais precisamente para a convicção que manteve durante muitos anos. “O conteúdo devia ser mais importante do que a forma — sim, essa era uma observação subversiva para uma escritora como eu que tinha sempre feito experiências com a forma, mas é a observação errada para alguém que nunca o fez.” Ou seja, perante a pergunta que lhe formulámos: forma ou conteúdo?, Deborah é concludente: “Conteúdo, claro”, e acrescenta: “Venho da tradição de vanguarda da escrita que geralmente honra a forma. Mas no final, se formos um escritor competente, paramos de pensar na forma para descobrir a melhor maneira de contar a história.” Mais adiante, no capítulo Entusiasmo Estético, há-de formular esse pensamento numa frase que, entretanto, se tornou emblemática da sua maneira de pensar a escrita. “Dissera ao lojista chinês que, para me tornar escritora, tive de aprender a interromper, a fazer-me ouvir, a falar um pouco mais alto, depois mais alto ainda, e finalmente a falar apenas com a minha própria voz que não é nada alta.”
A descoberta com erro
Ao longo do livro é como se o leitor a acompanhasse nesse processo de descoberta da sua condição, do seu método, do que a levou à escrita desde o momento em que teve consciência de si, em Joanesburgo, onde nasceu em 1951, filha de um membro do ANC, o Congresso Nacional Africano. Primeiro que tudo houve essa vontade de falar alto, ou melhor, a escrita como uma alternativa para dizer as coisas em voz alta. Explica: “Escrever é uma forma de pensar alto. Mas é uma espécie mais profunda de pensamento do que aquele que está por detrás das palavras que digo alto a alguém. Escrevo para descobrir qualquer coisa e como uma coisa se liga a outra. É sempre uma aventura ir por caminhos errados, ficar perdida, encontrar o caminho de volta. E depois, sabe, escrever também é um tipo de representação, uma performance, um entretenimento. É um vaudeville existencial, e é também qualquer coisa muito silenciosa e calma.”
A escolha do título, Coisas Que Não Quero Saber, tem a ver com isto, processo de busca que inclui a perdição e o sofrimento até qualquer coisa parecida com um fazer as pazes com uma essência. Na resposta à pergunta sobre a razão do título, Levy começa com um “Aha!”. E depois desvenda: “As coisas que não queremos saber são as coisas que de qualquer maneira já sabemos, mas que foram afastadas, reprimidas. Freud chamou a este processo ‘esquecimento motivado’.”
Continuamos em Joanesburgo. O ano é o de 1964. “Está a nevar na África do Sul do apartheid”, escreve Levy. Por razões políticas, o pai desapareceu da vida de Deborah. A mãe dizia-lhe que ele havia de voltar. Essa ausência do pai liga-a Orwell. Como ele, ela cresceu a pensar nessa figura ausente. Procurava pistas para o mistério nos olhos dos que a rodeavam e segurava na sua Barbie encontrando nela o que não via nos outros: “queria olhos que não encerrassem segredos”. O pai regressou e a família emigrou para Inglaterra. Ela explora esse período no capítulo Impulso Histórico. Ao escrever, confessa ao Ípsilon, “tornou-se claro que Coisas Que Não Quero Saber se estava a tornar bastante autobiográfico. Era a primeira vez que escrevia acerca da minha infância sul-africana. Escrever esse capítulo foi bastante doloroso, mas se eu tinha como tópico o impulso histórico de Orwell achei que o devia honrar.”
Ao fazê-lo socorreu-se de muitos outros escritores. George Perec, por exemplo, em epígrafe: “Em linhas gerais, sei como me tornei escritor. Não sei exactamente porquê. Para existir, tinha verdadeiramente necessidade de alinhar palavras e frases? Bastar-me-ia, talvez, ser autor de alguns livros? [...] Um dia, por certo que terei de começar a usar palavras para revelar o real, para revelar a minha identidade.” Levy ouve o eco destas palavras. Como escuta as de Sartre, Gabriel García Márquez, George Sand, Julia Kristeva, William Blake, Simone de Beauvoir, Marguerite Duras. “Enquanto escritora, Duras chega tão perto da subjectividade humana quanto pode chegar um escritor sem morrer de sofrimento”, justifica, acrescentando: “As suas frases são serenas, claras, perfeitamente compostas e por vezes uivam à lua.”
Levy talvez aspire ao mesmo quando cita Duras para falar da condição de ser escritor no feminino e constrói a sua própria argumentação, regressando ao ponto de partida, ou seja, a Orwell. “Talvez quando Orwell descreveu o puro egoísmo como uma qualidade indispensável num escritor não estivesse a pensar no puro egoísmo de uma escritora. Mesmo a escritora mais arrogante tem de fazer horas extraordinárias a fim de construir um ego suficientemente robusto para sobreviver a Janeiro, já para não dizer até Dezembro.” E, depois: “É esgotante uma mulher aprender como se há-de tornar um sujeito, e é bastante duro aprender como se há-de tornar uma escritora.”
Quando Orwell descreveu a exaustão do escritor não tinha este termo comparativo. “Todos os escritores são vaidosos, egoístas e preguiçosos, e no fundo mais fundo das suas motivações reside um mistério.” Ele foi um escritor num contexto particular, de guerras, tensão social, consciência de classe. Transpôs isso para a sua obra, ela é um reflexo desse tempo e do modo como quem a produziu viveu esse tempo. “O que mais desejei fazer ao longo dos últimos dez anos foi tornar a escrita política uma arte”, disse, o que remete necessariamente para o modo mais ou menos vigoroso como o real influencia um trabalho artístico, literário. Quando alguém descreve um beijo num cenário de catástrofe está a fazer uma escolha estética, mas também política. Levy não vê nisso senão o reflexo do poder de observação inerente ao escritor de ficção. E fala em escritora, no feminino.
“Uma escritora é tão interessante quanto for capaz de mostrar para onde está a olhar, como está a olhar, e para quem está a olhar” e conseguir com isso ter um olhar de volta, sintetiza Deborah Levy para quem escrever nesta forma, de autobiografia, tem mais a ver com os outros do que com uma descrição de si mesma. “A autobiografia é sempre mais sobre os outros do que sobre nós mesmos”, refere. Mesmo quando nesse processo de chegar ao outro se revele nas tais hesitações, na frustração, no erro, nas lágrimas que caem numa escada rolante, numa história de amor, no momento em que conta como soltou um pássaro de uma gaiola. O livro de Levy é a resposta a um ensaio, mas escapa a essa fórmula. É memória, e contém o tal mistério de que se alimenta muita ficção, o de não respeitar fronteiras. É mesmo representação, numa alusão à sua experiência enquanto não apenas dramaturga, mas também directora de teatro. Mas aqui, ao contrário do teatro, ela está sozinha, numa nudez tantas vezes comovente como combativa. “No teatro, um actor veste uma indumentária. O cenógrafo designer cria as luzes e o cenário. O compositor compõe a música. O encenador diz aos actores como se movimentarem no palco. No romance e nos contos, a escritora faz tudo sozinha. Ela é a encenadora, a cenógrafa e a compositora.”. Em Coisas Que Não Quero Saber, Deborah Levy consegue desempenho de elevado nível em todos esses papéis.