As felizes propriedades da luz segundo Benny Sings
Quem canta seus males espanta!: se a vida já é complicada que chegue, a música tem que servir para outra coisa. O lema do músico holandês é para levar a sério: no amor, na política, na arte.
Softly (Tokyo), assim se intitula a última das canções de City Pop – o que explica que um tipo holandês, a cantar em inglês, recentemente assinado por um dos mais reputados selos independentes americanos, edite o seu novo disco em primeiro lugar no… Japão? Nada há de necessariamente convencional no percurso de Benny Sings, 42 anos, eterno miúdo dos grandes caracóis que também calha de ser um brilhante multi-instrumentista, cantautor e produtor. “Há muitos anos atrás, talvez em 2005, um dos meus discos foi lançado, numa pequena edição, no Japão, porque a minha editora holandesa era de jazz, e há uma relação muito forte no mundo do jazz entre a Holanda e o Japão”, diz Benny ao telefone. Fala-nos de uma Amesterdão cujo centro, frisa ele, “é horrível, mas não representa nem 1/7 da parte velha. Eu conheço outra Amesterdão, uma cidade super-romântica, sossegada, earthy… É o melhor lugar do mundo” (logo a seguir dando conta de que, actualmente, suprema ironia, é a esquerda holandesa quem pretende encerrar o Red Light District e a direita conservadora que o pretende manter aberto pelo capital económico que representa).
“Depois desse disco”, continua, “produzi um artista holandês que se tornou muito forte no Japão, o que também foi bom para mim. Fomos lá fazer um tour, o meu nome começou a ficar maior e, a certa altura, comecei a dar concertos a solo também. Actualmente, vou lá uma vez por ano, e é fantástico! O meu estilo encaixa-se muito no estilo japonês porque tem uma influência jazzística, é soft, friendly… é ‘kawaiii’, como eles dizem, que significa ‘cute’”. Benny recorda, porém, como a receptividade a esta, digamos, meiguice da sua música nem sempre foi constante fora do Japão. “Ultimamente, parece que estou hip outra vez, sabes? No início de tudo, em 2003, falava-se muito em mim, eu era ‘trendy’ ou coisa parecida, mas depois fiquei fora de moda porque a cena era mais os Depeche Mode, a New Wave, aquela cena negra e depressiva toda… Mas, nos últimos 3 anos ou assim, parece que voltou a ser ‘ok’ ser feliz outra vez! Eu sinto mesmo esta diferença. Pessoas que nunca repararam em mim agora passaram a reparar. É muito estranho, não sei o que está acontecer…”. A ideia é interessante e Benny, depois de uma pausa, desenvolve-a: “Não consigo explicar por que razão as pessoas ‘querem’ ser felizes outra vez. Acho que é o zeitgeist, é para onde as pessoas estão a ir agora… Penso que é algo aleatório, na verdade. Todos os movimentos precisam de ter uma renovação... ‘After dark comes light again’, sabes? Mas que tipo de luz? Isso é o que nunca sabemos! Nunca sabemos em que dark ou em que light é que as pessoas vão pegar. E sim, talvez isto se possa explicar em termos políticos, vivemos tempos obscuros e tal, mas… não acho que seja o caso. Penso que é mesmo uma coisa aleatória! É muito difícil explicar por que motivo as pessoas gostam de determinado tipo de arte em cada momento, nunca o sabemos. Porque se o conseguirmos explicar, então, torna-se um tédio! A regra é a de que não o consigamos explicar”.
Criado na pequena cidade de Dordrecht (“Tive uma educação típica de classe média numa família de esquerda, tocava clarinete e a minha irmã piano, a minha mãe era dona de casa e o meu pai médico… A música esteve sempre muito presente nas nossas vidas, cantávamos música de coro nas festas de família à volta do piano!”) mas há muitos anos a viver em Amesterdão, tivesse este dotadíssimo compositor de canções nascido em Los Angeles ou Nova Iorque e, provavelmente, já teria assentado teclas e cordas um pouco por todo o mundo. Ou talvez não, ele que deliberadamente se furta a essa actual prática de se estar em modo tour quase permanentemente, e da qual nos últimos tempos tanto se tem falado com insistência à conta da deterioração da saúde mental de muitos músicos. O título do seu disco de 2007, Benny… At Home, tem, por isso, razão de ser: “Toda a gente na indústria sabe que eu não sou um músico ‘live’. Eu sou mesmo um tipo de estúdio. Gosto de dar concertos durante uma, duas semanas, talvez um mês, mas só isso…. Eu preciso mesmo de ter uma vida estável no dia-a-dia! Sou uma pessoa ansiosa, preciso de me sentir calmo, o que me permite evitar esse buraco negro que é estar sempre em tour. Prefiro ficar em casa com a minha família! Tenho dois filhos, mulher, uma cena super normal… sabes? Nunca pensei que viria a ser assim, mas sou, sou um gajo normal e, para mim, isso é algo maravilhoso”.
Geniozinho na sombra que dispensa o calor dos holofotes, a Sings pertence, quase sem se dar por ela, uma pequena grande obra da música popular dos anos 2000, e que, iniciada em Champagne People (2003), tem alternado entre o irrepreensível bom gosto e o irrepreensível bom gosto. Funk, soul, (synth-)pop, disco, R&B, hip-hop: tudo géneros, sensibilidades, aragens que circulam, como um miúdo de frondosos caracóis dourados correndo livremente pelo pátio, com a maior das naturalidades na sua música, a um só tempo delicada e colorida, sensual e, não menos importante, positiva. “Eu não sou uma pessoa extremamente positiva, sou um bocado ansioso e angustiado, mas gosto que a arte, que a minha música seja radiante. Normalmente, as pessoas que fazem música dark são pessoas super felizes na vida! Vestem-se todos de preto, têm um cabelo assim ou assado, berram, mas, quando os conheces, é logo: ‘Ei, yo, queres vir beber uma cerveja??’. São muito dadas e amigas de toda a gente, mas depois vão para o palco e gritam ‘Quero matar-me! Que se foda o mundo!’ (risos). Essa é uma contradição muito estranha para mim… Eu estou muitas vezes ansioso, frustrado, embora tenha muito entusiasmo pela vida. Mas sou uma pessoa complexa… Preciso de luz na minha música! Já tenho demasiada coisa na cabeça, não preciso que a música reflicta isso. Isto também se vê nos comediantes, são pessoas muito deprimidas que também precisam da luz… e os actores que fazem filmes dramáticos é que são os big shots, são eles que levam a easy life! Acho que as pessoas divertidas são as que mais sofrem na vida”. Se o património da música negra é o seu grande chapéu-de-chuva, diríamos que o holandês traz também muito à memória aquela soul branca cruzada com a pop e o pós-punk britânicos dos anos 70/80 (“branca”, sim: as magníficas orquestrações dos afro-americanos tocadas por brancos, intercâmbio muito bonito que hoje seria imediata, disparatadamente, rotulado de “apropriação cultural”).
Essa blue-eyed soul (Doobie Brothers, Boz Scaggs, Hamilton, Joe Frank & Reynolds, Hall & Oates, etc.) que, entretanto caída no esquecimento (e, mesmo à época, a sua recepção junto da crítica e público não foi unânime), tem vindo nos últimos anos a ser retomada, timidamente mas com a lição muitíssimo bem apreendida, por gente como os Young Gun Silver Fox (primoroso encontro entre Andy Platts e Shawn Lee). Benny frisa, porém, que a primeira conexão para a sua vontade de fazer música foi o funk: “Nos anos 90, a cena era o grunge, toda a gente era deprimida e vestia-se de preto, mosh pit todas as sextas. Eu estava no oposto disso, andava de amarelo e cor-de-rosa, a minha primeira banda chamava-se The Love Boat e só tocávamos música suave, super-feliz! Éramos inspirados pelos P-Funk, George Clinton, essas cenas trippy … Ao mesmo tempo, o hip-hop apareceu e foi ele o meu primeiro amor ali entre os 90 e os 2000, com The Roots, De La Soul, essas coisas. Depois, quis fazer música electrónica, ser DJ... Mais tarde, fui fazer o curso de Sonologia, uma cena super estranha e artsy. Estudávamos composição desde os anos 50, Stockhausen, etc.. Tinha que compor coisas mesmo complexas… até tinha ataques de pânico, sabes?! (risos) Foi uma página negra na minha vida e, por isso, quando terminei o curso, decidi que era momento de voltar à luz. E foi aí que comecei o projecto Benny Sings. Para me sentir bem outra vez!”.
Virar as costas ao medo
Havíamos terminado o ano de 2018 com Like A Baby, disco de Jerry Paper editado pela Stones Throw. Pois que é também ela que agora nos dá um dos mais belos discos de 2019. Depois de, nos primeiros tempos, ter sido acompanhado pela holandesa Dox e pela alemã Sonar Kollektiv (fundada pelos Jazzanova), Benny subiu um degrau e lançou Studio, o seu último disco, pela Jakarta (também alemã) em 2015. Até chegarmos aqui, ao encontro com a Stones Throw (fundada pelo também músico Peanut Butter Wolf), espécie de pequeno el dorado do século XXI para novos criadores no espectro da música negra, e a quem devemos lançamentos contemporâneos tão preciosos como os de Gabriel Garzón-Montano, Tuxedo, Stimulator Jones, Mayer Hawthorne ou Dam-Funk (a lista é longa). “A minha música foi sempre distribuída na América através de editoras europeias ou americanas, como a Fat Beats. Houve sempre uma grande relação do público com a minha música nos EUA, especialmente os ouvintes de black music. Sempre tive muito fãs em Atlanta, quase como no Japão… Para mim, a América ainda é a promissed land, é de onde vem toda esta cultura pop ocidental. Eu sou obcecado com a cultura americana, por isso sempre quis estar lá. Mas nunca viveria na América! Amo estar aqui na Holanda, na Europa”.
O novo disco nem foi, na verdade, o primeiro vislumbre da sua ligação com o selo americano: em Novembro do ano passado, Benny lançou-se à recriação de um hit de nada mais, nada menos que Drake: numa daquelas típicas caves de Amesterdão à beira rio, vemo-lo a reinterpretar, com ênfase nas teclas, Passionfruit, transformando o ambiente original de noite e sedução do rapper de Toronto numa melancólica, humilde, balada de todos os dias. Depois disso, anunciava o primeiro single (escrito a meias com Mayer Hawthorne): a maravilhosa Not Enough (“Baby you’re my alibi”, geme o sax), com um desconcertante, engraçadíssimo videoclipe a acompanhar. Mas que City Pop é, então, a do título deste disco? Uma cidade da música popular, sem dúvida, aqui se devendo entender “pop” no melhor, mais amplo, sentido, como utópico património de uma vivência, enfim, feliz: luz, cor, alegria, amor, movimento, (ironicamente, o videoclip de Not Enough, algo lynchiano, não deixa de parodiar a sociedade “pop”). É para este concerto de boas vibrações que remete, aliás, a ilustração que ornamenta a capa do disco: Benny, ao piano, a espantar a fealdade da cidade (as fábricas e o fumo, os helicópteros, os arranha-céus e a serpente que pelo meio deles se esconde…): em tempos perigosos como os actuais, Benny não facilita e oferece-nos mais um disco que, não obstante os seus momentos melancólicos, é predominantemente cintilante e divertido. “‘Power to the people’, não foi o que sempre quisemos? Agora está a acontecer e vemos que é uma merda, porque a palavra ‘povo’ é assustadora, o ‘povo’ é como a máfia… Eu não tenho respostas, mas não estou com medo de nada. Não tenho medo da extrema-direita, não tenho medo que caiamos e que nos tenhamos de levantar novamente! Na verdade, não sabemos se haverá uma 3.ª Guerra Mundial ou se não estaremos apenas com medo de um grande cataclismo que, se calhar, nem existe. Apesar de tudo, continuo fascinado pelo ser humano, pela humanidade. Sim, talvez haja algo terrível para breve, mas veremos isso na altura própria, não vejo razão para ter medo sobre algo de que ainda nada sabemos. Temos de virar as costas ao medo”.
Aliadas ao timbre juvenil, quase ameninado, da voz de Benny, a frescura e a bonomia dos ambientes tecidos dão, neste como nos discos anteriores (oiça-se a caixinha-de-música que é “This Is A Samba”, de Art, 2011), um certo lado “Joane Come a Papa”, do tipo de um B Fachada é Pra Meninos. Quando, hesitantemente, lhe propomos esta ideia, o próprio imediatamente nos diz que já pensou sobre essa possibilidade: “Sem dúvida! A minha mulher está sempre a insistir comigo para fazer um álbum para crianças! Na realidade, estou a planear fazê-lo este ano, mas vai ser cantado em holandês”. A sua voz, porém, diz ele, não é para todos: “Acho que há um ‘problema’ com a minha voz. O Rex Orange County faz música muito parecida com a minha, mas ele tem uma voz esmagadora. Eu não tenho uma voz atlética, especialmente ao vivo. Penso que essa é uma das razões pelas quais nem toda a gente se identifica com a minha música. A maioria das pessoas que não tem formação musical ou que não presta tanta atenção aos pormenores quer é ouvir uma grande voz, quer ser impressionada, do tipo ‘Ele consegue fazer isto com a voz!’”. Uma sensação que aqui e ali nos assaltou em City Pop foi a sua muito subtil, muito delicada, palpitação de chanson (em “Familiar”, por exemplo). Mal sabíamos nós, no momento em que tomávamos nota dessa impressão, que Benny nos viria a agradecer pela mesma: “A sério?! Uau! Obrigado, isso é um grande elogio! Eu cresci a ouvir muita chanson em casa… O que é engraçado é que, há uns meses atrás, comecei a pensar em fazer um disco de chanson com uma base de hip-hop… Entretanto, tinha-me esquecido disso, mas agora lembraste-me!”. Quem sabe, por isso, se, daqui a uns tempos, não nos voltamos a encontrar com Benny para falar sobre um disco na companhia de uma certa Charlotte, filha de uma dos nomes maiores da música francesa. Peut être…