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Que faremos desta Quaresma?

Sabemos demasiado as consequências das vezes que, na Igreja, se esqueceram as opções do Mestre.

1. Quem nunca ri, quem nunca tem vontade de rir, quem anda sempre à procura de más notícias, falta-lhe alguma coisa. Desde sempre se considerou que o ser humano é um animal que ri, que ri das coisas e das situações mais variadas, que faz rir e, sabedoria suprema, sabe rir de si mesmo. Não é muito agradável viver com pessoas que reprimem, em si, o sentido de humor e que se ofendem com o humor dos outros.

A relação do riso com as religiões está tecida de contrastes. Só os ignorantes podem dizer que a alegria, o bom humor e a religião andaram e andam sempre de costas voltadas [1]. Pelo contrário, muitas das expressões da religião popular eram, também, as grandes celebrações da alegria do povo cristão. No entanto, em certas épocas e em certos grupos, no campo católico (mas não só), religião e tristeza, vida religiosa e clima sombrio, desenvolveram uma relação pouco sadia. Não riem e não suportam o riso dos outros. Sentem-se tão ofendidos com as brincadeiras que os outros fazem ou dizem acerca da sua religião que podem até suscitar a violência contra os humoristas. Decretam que o sagrado é intocável.

Foi há muitos anos – eu ainda era muito novo – que, numa aldeia vizinha, na festa de Santa Apolónia, ouvi o que nunca esqueci.

Não havia electricidade, mas uns geradores conseguiam que os altifalantes transmitissem discos de folclore nortenho que estavam proibidos em festas religiosas. É evidente que as populações nem dessa nova tecnologia precisavam para cantar à desgarrada e dançar horas a fio. Não faltava, nas aldeias, quem soubesse tocar viola, violão, cavaquinho, concertina, etc.. Nos anos 40 do século passado, nasceu e desenvolveu-se uma pastoral equivocada de “cristianização” das festas. Havia, na mesma altura, muita vontade de criar a JAC. Quem pertencesse à Acção Católica não podia dançar, mas a dança em público, no terreiro, era, na minha zona, tão antiga que era irreprimível.

Recordo que, nessa festinha de Santa Apolónia, estavam velhos e novos entusiasmadíssimos a dançar. De repente, ouviu-se a voz do pároco, pelo altifalante, a proibir aquela alegria e disse textualmente: “preferia ver-vos ir para o Hospital de S. Marcos de Braga, de cabeça rachada, do que ver-vos dançar.”

Para entender esta referência hospitalar, é preciso não esquecer que as feiras e as romarias não eram só ocasiões de folia. Eram, também, ocasiões de grandes cenas de pancadaria entre aldeias desavindas. Algo absolutamente brutal e estúpido. Ora, aquele bendito pároco preferia o exercício da violência entre grupos e aldeias às danças e às desgarradas das festas. O pecado não estava ligado à violência, mas aos folguedos decretados como pecado. O desnorte moral era tão disparatado que as expressões normais da alegria eram pecado e as expressões do ódio e da violência, uma boa alternativa.

2. A Quaresma vem depois do carnaval. Não tenho grande devoção às versões televisivas dos carnavais nacionais e estrangeiros. Não assinaria, porém, a carta da Irmã Lúcia ao Patriarca de Lisboa para que o governo de Salazar proibisse o carnaval. Substituir as festas populares do carnaval pela adoração reparadora do Santíssimo Sacramento pode ser um exercício espiritual de grande valor, mas pode também dar a ideia que Jesus se dá mal com a alegria popular. Quando se diz que os Evangelhos não mostram Jesus a rir, esquece-se que rir não é um milagre, uma acção extraordinária, mas o normal de gente normal. Por outro lado, é posto na boca de Jesus: eu digo estas coisas para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena [2]. João termina a introdução à sua Primeira Carta em plena sintonia com o Mestre: e isto vos escrevemos para que a nossa alegria seja completa [3]. A maior ignorância de quem ouve falar do Evangelho é não saber que a palavra inicia a narrativa, em quatro versões, de boas notícias. Não tem nada a ver com o estilo usado nos telejornais que esquecem tudo o que há de bom, belo e alegre no mundo à mistura com o que estraga a vida. Inverte-se a realidade: é por causa da beleza e da bondade do mundo que é horrível aquilo que o perverte.

3. Com a quarta-feira de cinzas (dia 6) começou a quadra litúrgica da Quaresma. As cinzas não se parecem nada com um rito de alegria. Ainda sou do tempo que essa imposição era acompanhada de uma triste e niilista verdade empírica: lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar. Esta afirmação contrariava o prefácio da missa de defuntos, como lembrei no Domingo passado: a vida não acaba, apenas se transforma. No rito actual, a imposição das cinzas é magnífica: arrependei-vos e acreditai no Evangelho. Significa que não devemos continuar a estragar a vida, mas pelo contrário, acreditar que a alegria é possível. É o tempo da conversão, da esperança!

A proclamação do Evangelho [4], desse dia, é uma diatribe contra a hipocrisia das rezas, dos gestos, das esmolas, do jejum, de tudo o que é feito para compor um cenário de ostentação dos que querem dar uma boa imagem de si. O conselho de Jesus é outro: quando jejuardes, não tomeis um ar sombrio, como os hipócritas, que desfiguram o rosto para mostrar que jejuam. Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto para que os outros não percebam que jejuas. Deve bastar que seja Deus, teu Pai, a alegrar-se com as transformações que estão acontecer em ti.

Hoje, somos informados que Jesus também foi fazer retiro, um longo retiro, conduzido pelo Espírito de Deus. Estava perante a concretização do seu projecto de vida. Que fazer? Como fazer? Um dia publicará o manifesto das suas opções radicais em favor dos atirados para a margem da história [5].

O Diabo, a figura de tudo e todos os que se opunham a este projecto libertador, propõe-lhe uma alternativa exaltante: usa os teus recursos divinos para resolver, por decreto, os problemas da fome, da dependência política, exibindo um miraculoso espectáculo religioso. Deixa-te de lirismo e convence-te que o caminho é o do poder de dominação económica, política e religiosa.

Jesus, a todas essas propostas, disse um não absoluto, definitivo.

Sabemos demasiado as consequências das vezes que, na Igreja, se esqueceram as opções do Mestre.

Agora, parece-me ridículo, quando o Papa Francisco insiste, contra tempos e marés, na renovação da Igreja ao serviço da transformação do mundo na pátria da alegria, se exija que ele faça um milagre de transformar a Igreja e a sociedade, por decreto, dispensando o empenhamento de todas as pessoas de boa vontade.

[1] Alessandro Pronzato, “La boca se nos llenó de risas”. Sentido del humor y fe, Sal Terrae, Santander, 2006
[2] Jo 15, 11
[3] 1Jo 1, 1-4
[4] Mt 6, 1-18
[5] Lc 4, 16-30

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