8 de março, dia de lutas
O Bloco de Esquerda propôs e o Governo aproximou-se da ideia de criação de Tribunais Especializados de Competência Mista em Violência Doméstica. É um caminho urgente que deve ser seguido.
Hoje não é um dia como os outros. É um dia para lembrar todos os outros em que os direitos das mulheres são negados, brutalmente negados. São as desigualdades, a desvalorização, os condicionalismos culturais, a justiça cúmplice com a violência e as mortes. Brutais, hediondas, avassaladoras. 12 mulheres assassinadas pelos seus companheiros desde o início do ano. 515 mulheres mortas nos últimos 15 anos em contexto de violência doméstica. Hoje é um dia de luta, por todas aquelas a quem não chegamos a tempo e por todas a quem não podemos faltar.
A violência doméstica é o crime que mais mata em Portugal. É, sem dúvida, uma forma extrema de dominação sobre as mulheres. Mas, afeta também as crianças, sujeitas de forma direta ou indireta às situações de violência, elas também vítimas deste crime. Podemos fazer mais para combater este flagelo? A resposta é inequivocamente sim.
A lei, ao contrário do que ouvimos recorrentemente, não é suficiente e tem de ser alterada. As estatísticas demonstram-no: 70% das queixas de violência doméstica são arquivadas, 90% dos processos concluídos acabam em pena suspensa e apenas 37% dos condenados por crimes sexuais cumprem pena de prisão efetiva. Os crimes contra o património são mais severamente punidos do que a violência contra as mulheres, o que é incompreensível. Sim, a lei tem de ser alterada e as molduras penais devem ser revistas e agravadas.
A organização judiciária também tem de ser revista. Comecemos pelo mais óbvio: a persistente desvalorização e naturalização da violência doméstica, bem como dos crimes sexuais, em particular pelas instâncias judiciais. O juiz Neto de Moura é o exemplo mais gritante, mas está longe de ser o único juiz que assume uma desvalorização da violência sobre as mulheres como vários acórdãos demonstram e já foi bem identificado por diversas opiniões ou editoriais neste jornal. Formação precisa-se para os magistrados nesta matéria, é claro, mas não podemos apenas ficar à espera dos resultados deste caminho que demorará décadas a ter efeitos. Por isso, o Bloco de Esquerda propôs e o Governo aproximou-se da ideia de criação de Tribunais Especializados de Competência Mista em Violência Doméstica. É um caminho urgente que deve ser seguido, garantindo a especialização de magistrados e o tratamento englobado das questões de tutela parental, indissociáveis de muitos casos de violência doméstica.
Sabemos que muitas vozes conservadoras se levantam contra estas escolhas, algumas mesmo dentro do próprio PS. O debate parlamentar de ontem mostrou isso mesmo, com a deputada Isabel Moreira a dizer ao Governo que não conta com o Grupo Parlamentar do PS para fazer este caminho que chama de “populismo penal”. Fica o PS ao lado de PSD, CDS e até de PCP, mas não ao lado de uma maioria social que recusa esperar mais para responder a um flagelo que já matou tantas mulheres. O imobilismo não é uma escolha no combate à violência sobre as mulheres. Acenar com um problema de inconstitucionalidade destas propostas é querer ignorar que a Constituição congrega direitos e garantias e que aqui há um bem jurídico maior a preservar: a integridade da mulher e dos filhos. Acima de tudo, é desistir ainda antes de começar a construir uma resposta que até pode chegar a outras soluções, mas que é inadiável.
É certo que o dia de hoje carrega mais lutas consigo. A luta pela representação política - que foi a raiz do 8 de março, idealizado por Clara Zetkin -, contra o tal “glass ceiling” (teto de vidro) das barreiras invisíveis que impedem as mulheres de aceder aos lugares de topo das empresas/organizações, pela igualdade salarial no mercado de trabalho, pela igualdade nas tarefas domésticas e na vida familiar. Sim, ainda temos muito caminho até chegar à necessária igualdade.
A greve feminista internacional anunciada para este dia 8 de março é mais um passo no caminho pela afirmação dos direitos das mulheres. Congrega todas estas lutas numa afirmação de coragem para vencer quaisquer subalternizações e alcançar a emancipação e a igualdade. Não esqueçamos: Se as mulheres param, o mundo pára.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico